Hoje vou mudar de assunto e partilhar convosco uma conjectura que sei ser discutível e de que eu próprio me rio, mas contra a qual na verdade ainda não encontrei argumentos científicos. Quem quiser divertir-se, que se adiante. De qualquer modo e antes de prosseguirem a leitura, repito que o que se segue não pretende ser inteiramente ciência, mas apenas ilustrar galhofeiramente como a Ciência não é neutra.
Como muitos saberão, há muitos investigadores que se têm interessado pelo estudo evolutivo de alguns marcadores genéticos, em particular dos haplótipos, umas combinações de alelos ou genes com variantes que determinam, por exemplo, as diferentes cores de olhos ou de cabelo entre indivíduos. É a partir dessas investigações que, por exemplo, se chega à conclusão de uma origem única para a nossa espécie no corno de África, de onde aliás partiram várias vagas de humanos, a última das quais, a nossa (Homo Sapiens), há cerca de 40-50 mil anos. Estudos similares na linguística chegam às mesmas conclusões, o que não é de surpreender visto os dialectos se desenvolverem em comunidades mais ou menos fechadas que tendem naturalmente também para a afinidade genética.
Basicamente esta linha de pensamento considera que numa dada comunidade de onde se separe um sub-conjunto de indivíduos, este sub-conjunto é portador de apenas parte da diversidade genética do grupo original, de modo que à medida que vai ocorrendo a "sub-especiação" a homogeneidade genética dos novos sub-grupos aumenta. Por conseguinte, os grupos com maior diversidade genética serão os mais antigos, e os com menor os mais recentes.
Como noutras áreas da Ciência, porém, esta teoria (ou da origem única) é controversa e tem a oposição dos que defendem uma origem multi-regional da espécie, com múltiplos cruzamentos ao longo do tempo. Porém, à medida que a informática e o estudo do genoma permite o tratamento de volumes cada vez maiores de dados genéticos de diferentes populações, a teoria da origem única tem vindo a ganhar terreno enfraquecendo os argumentos da teoria da origem múltipla. As consequências ideológicas destas duas teorias permitem compreender porque é tão acesa a luta entre elas: a teoria da origem múltipla aponta para uma natureza humana originalmente boa e tolerante às diferenças, mais tarde pervertida pelas estruturas sociais da civilização, enquanto a teoria da origem única aponta para a supremacia de uma única linhagem original, sem cruzamentos entre sub-espécies substancialmente diferentes e com a eliminação das menos aptas (não forçosamente pela guerra, entenda-se).
Um exemplo típico desta polémica é a que foi despoletada pela descoberta em 1998 do nosso célebre "menino de Lapedo", que o arqueólogo João Zilhão e outros defendem constituir uma prova do cruzamento de Neanderthais com Homo Sapiens, há uns 25 mil anos (a península ibérica foi o último lugar onde viveram Neanderthais, até há 25-30 mil anos), mas outros argumentam ser impossível ainda haver traços morfológicos de Neanderthal muitas gerações depois desta sub-espécie humana ter desaparecido. Um projecto de sequenciação do Genoma do Neanderthal, entretanto, tem vindo a reforçar a hipótese de que não haverá, de facto, traços genéticos dessa sub-espécie na nossa. Note-se que, segundo a teoria da origem única, terão havido várias vagas migratórias originais de África de espécies humanas, mas só a última vingou. A nossa, obviamente.
Muitos destes estudos centram-se no ADN mitocondrial, que quase só se propaga por via materna, ou no do cromossa Y, que só se propaga por via paterna, embora em ambos se usem modelos de "relógios moleculares" para temporizar (estatisticamente) as mutações e, retrospectivamente, origens ancestrais das populações.
Entretanto, um dado assente é que o advento da agricultura e, com ela, a "1ª vaga" de explosão demográfica humana (a 2ª ocorreu com a industrialização e a 3ª estará em curso com a revolução do conhecimento), deu-se no Próximo Oriente e propagou-se daí pela Europa. A "1ª vaga" correspondeu à chegada do Neolítico e com ela à superação do Paleolítico, dominado pela caça e pela apanha do que a Natureza proporcionasse, e ocorreu há cerca de 10 mil anos, chegando à ponta da Europa mais afastada do Médio Oriente, a Irlanda, há uns 6 mil anos (e cá há uns 8 mil). Muito antes disto e praticamente logo que aparecera, a nossa espécie dedicara-se a realizar "crimes contra a biodiversidade" do planeta, depradando até à extinção muitas das grandes espécies que encontrou, dos mamutes norte-americanos aos cangurus gigantes da Austrália.
Se a propagação da 1ª vaga foi por via cultural (conversa e aprendizagem) ou por migrações (deslocação pessoal) tem sido uma questão em aberto entre os investigadores.
Ora acaba de ser publicado um estudo envolvendo um largo conjunto de investigadores europeus de diferentes países que demonstra que há uma extrema coincidência entre a conhecida propagação da agricultura na Europa, de Sudeste para Noroeste, e a presença de um marcador específico no cromossa Y dos homens - e essa coincidência é no sentido de a maioria dos homens europeus, cerca de 80%, descenderem dos mesmos "avôs", ou antepassados masculinos. O que não se verifica quanto aos marcadores genéticos de origem feminina. Estes novos resultados parecem corrigir as conclusões obtidas há uma década e que apontavam para uma maior diversidade de origens masculinas, embora já então fosse evidente elas não coincidirem com as femininas.
Quer isto dizer que com o advento da agricultura, foram os homens agrícolas que predominantemente se reproduziram, com mulheres locais (paleolíticas). O que aponta para a regra da poligamia ter acompanhado a 1ª vaga.
Aliás, outros estudos genéticos recentes do mesmo género também já apontavam para o facto de sermos todos descendentes de um número reduzido de homens, muito menor que do número de mulheres.
Estas conclusões parecem dar razão à opinião de um amigo meu, segundo a qual há uma alienação na busca masculina de sucesso social e riqueza como fim último da existência, visto o verdadeiro fim natural desta ser o da posse do maior número possível de mulheres, com vista à maximização da reprodução dos genes masculinos. E, invocando o exemplo de muitas espécies animais, nota ele que verificando-se aí a existência de machos dominantes que após acesa competição logram o "the winner takes it all", isso é a forma como a Natureza procede ao apuramento dos genes que garantem a adaptação evolutiva permanente ao ambiente - por via da competição entre os machos e pela reprodução apenas dos dominantes. Aliás, do ponto da vista da Natureza os machos não teriam mesmo mais nenhum papel.
Embora admita que o cromossoma Y é o que mais mutações tem sofrido e que será predominantemente através dele que a evolução genética se processa nos mamíferos, a mim sempre me pareceu que esta teoria dos machos dominantes e polígamos era uma generalização abusiva das práticas dos herbívoros, que vivem, de facto, em grandes grupos (de fêmas, crias, e um macho dominante). Nos carnívoros, porém, que são muito mais inteligentes que os herbívoros, as práticas "familiares" são diferentes. Há só uma regra comum: os machos não toleram crias alheias, o que cria um curioso fundamento para o regime "familiar" dos leões, por exemplo: as leoas acarinham o seu leão macho porque é ele que lhes protege as crias contra os outros machos de fora da "família" - mesmo que esse macho tenha ganho o seu estatuto matando as crias anteriores da leoa! Mas, nos carnívoros, as coisas são de facto diferentes, e mesmo nas poucas espécies que constituem grandes grupos, como as dos eficazes canídeos, ou há também uma fêmea dominante que também mata as crias das outras fêmeas e forma um casal real, como nos lobos, ou são mesmo as fêmas que são dominantes, como nas temíveis hienas.
Seja como for, a revelação de que o número dos nossos antepassados masculinos é muito menor que que o dos femininos parece apontar para a predominância do paradigma sexual dos chimpanzés sobre o dos bonoboos na nossa ancestralidade, o que para quem se imagina um macho dominante nesses tempos antigos pode parecer interessante, mas a quem eu notaria que, probabilisticamente, se fossem machos transportados no tempo para essa antiguidade seria bastante mais provável, pela simples lógica dos números, que pertencessem ao maioritário conjunto dos excluídos, e não ao da minoria dominante. Uma lógica similar à que se pode aplicar às bonitas histórias sobre príncipes e cavaleiros antigos e em que gostamos de nos imaginar a viver como eles, mas em que a simples lógica dos números nos indica ser muito mais provável sermos os seus miseráveis criados ou servos da gleba, se fossemos transportados para tais cenários.
E vem isto tudo a propósito do advento da monogamia, ocorrida há uns 5 mil anos, depois de bem assente a revolução neolítica e quando as cidades se erigiram em civilizações, com Estado, leis e escrita. Monogamia tratada legislativamente em detalhe no Código de Hamurabi, regulada nos 10 Mandamentos judaicos e imposta, claro, pelo cristianismo.
E a conjectura que me traz aqui é esta: hoje, que graças à invenção da pílula e ao facto da 3ª vaga ser partilhada pelas mulheres, temos vindo a viver uma nova revolução sexual, a das mulheres, há muito quem olhe para a monogamia tradicional como um ferrolho da liberdade. Porém, a monogamia veio trazer a cada homem o direito de ter uma mulher, quando antes essa propriedade seria exclusiva de chefes e reis, que as tinham a todas, a julgar pela descendência que deixaram (incluindo nós).
Ou seja: a monogamia, longe de ter sido um ferrolho à liberdade pessoal masculina, foi de facto uma grande evolução democrática e uma importante limitação do poder dos chefes e reis.
Para os homens, claro.
Para as mulheres, a democratização sexual teria que esperar mais 5 mil anos e ainda não foi aceite pelos muçulmanos, razão maior da guerra mundial em curso e apesar de uma amiga minha defender, talvez com algum exagero, que "no fundo de cada homem há sempre um muçulmano recalcado"... :-)
9 comentários:
Interessante. Não consideraria a ideia tão descabida como isso.
Caro Prof. Pinto de Sá,
Conjectura: será que a mudança de tema deve-se a uma sábia premonição sobre o afastamento dos que não partilham - e apoiam estridentemente - o Presidente do Conselho?
Cumprimentos,
(e mais anónimo do que nunca!)
Anónimo, não há mudança de tema. Este blog não trata só de energia. A mudança é só relativamente aos temas mais recentes, mas na verdade não é uma mudança e é antes um simples compasso de espera. Como as águas que recuam antes de formarem a onda do tsunami... :-))
Mantendo o meu comentário anterior sobre o interesse da nota, queria, no entanto, qualificá-lo com as seguintes questões(à luz de uma melhor reflexão, e do que me lembro do The Third Chimpazee, de Jared Diamond):
1) Está comprovado que a implantação da monogamia é coeva do neolítico? É que, salvo melhor informação, não me parece que o padrão existente nos povos paleolíticos que ainda existem, seja o da poligamia. A espécie humana ficaria a meio termo entre os bononos e os chimpazés, segundo Diamond.
2) Por outro lado, é claro que existe a evidência genética que aponta. Admitindo que a monogamia seja o estado habitual das coisas, como se explicaria aquela? Bem, uma possibilidade poderia passar por isto: Jarred Diamond diz que é necessário distinguir nas sociedades entre os períodos de estabilidade, dos períodos de expansão (acesso a novos territórios, a novas tecnologias). Nestes últimos, é que acontecem as "chatices" todas, e onde as questões da sustentabilidade (eliminação de espécies, etc.), e - é a minha sugestão - possivelmente, a "restrição" da monogamia à difusão dos genes, vão às urtigas. Haverá outras situações semelhantes, como a evidência genética das invasões mongóis em toda a Ásia.
Caro Matias,
No Paleolítico é verosímil que reinasse o "comunismo primitivo", com ausência de família, de que falava Engels. É verosímil mas nada sabemos disso, áparte alguma falta de evidência genética para o contrário.
Também é verdade que, desde que existe escrita, todas as referências escritas vão no sentido da monogamia. Citei o Código de Hamurábi como a lei escrita mais antiga que se conhece e que já regula o casamento monogâmico.
O problema é o intervalo de tempo entre o advento do Neolítico, há uns 50 mil anos, e o advento da escrita há 5 mil anos. E é para esse período de tempo que as análises genéticas, à falta de outros dados, apontam para um número restrito de homens cuja descendência sobreviveu. Mas já das mulheres não, o que contraria a hipótese de as proles dos homens neolíticos terem sobrevivido por melhores condições de vida - se fosse isso, também só as proles das mulheres neolíticas teriam sobrevivido.
A minha opinião é que todas as medidas de humanização - da monogamia ao respeito pela biodiversidade - são produto da nossa civilização, e não o contrário, como advogam os saudosos de um suposto passado idílico que nunca existiu.
Ao comentar pela primeira vez neste blog não quero deixar de o felicitar pela qualidade dos conteúdos.
Quanto à mudança de tema, ela chega num momento curioso pois acaba de ser conhecido mais um desenvolvimento na história Ibérica dos Neanderthalenses devida ao Prof. Zilhão:
http://www.sciencedaily.com/releases/2010/01/100126220321.htm
Cumprimentos
Meu caro,
Eu, evidentemente, estou a entrar demasiado em território que não é o meu. Em todo o caso, fui mesmo reler o que Jarred Diamond diz, no The Third Chimpazee, sobre a evolução da sexualidade humana (capítulo 3).
E aquilo que diz é o seguinte: "...human pairing is more or less monogamous in most modern political states, but is "mildly polygynous" among most surviving hunter-gatherer bands, which are better models for how mankind lived over the last million years [...] By "mildy polygynus", I mean that most hunter-gatherer men can support only a single family, but a few powerful men have severeal wives. Polygyny on the scale of elephant seals, [...] is impossible for hunter-gatherer men because they differ [...] in having to provide child care. The big harens for which some human potentates are famous didn't become possible until the rise of agriculture and the centralized government [...]".
Os factos evolutivos invocados, são, na nossa espécie, a necessidade de apoio parental prolongado, e as implicações sobre o comportamento sexual, das dimensões relativas diferentes dos machos e fêmeas, e dos seus órgãos sexuais, face ao que acontece no caso dos outros primatas [é natural que me esteja a falhar alguma coisa]. Não sei até que ponto a sua tese da prevalência da poligamia antes do neolítico é qualificada por isso.
Fica, contudo, por explicar o facto apontado, de na Europa, a nossa ascendência genética ser devida a um leque reduzido de homens quando comparado com a maior diversidade do contributo feminino. Que a expansão neolítica foi a responsável, isso é claro - ela encontrou, nomeadamente, uma população mais reduzida e mais dispersa, o que facilita a introdução de um novo perfil genético (isso é referido no caso dos mongóis). Mas qual foi o mecanismo usado? Será como sugere que a regra da poligamia acompanhou aquela expansão. o que determinou a diferença? Continuo a considerar a tese interessante, mas ... As grandes emigrações humanas, pelo menos as anteriores ao século XIX, caracterizaram-se, regra geral, por serem violentas, e pela dispersão forçada e generalizada dos genes masculinos.
Claro que essa é imagem que se associa com as invasões mongóis e não com a expansão de agricultores, de que estaríamos à espera, fossem não só mais pacíficas, mas integrando uma componente feminina maior.
PS(I): Estou de acordo consigo que o respeito pela biodiversidade é algo (muito) recente. Acontece é que houve situações, onde pela força das circunstâncias dadas sociedades conseguiram uma gestão sustentada dos recursos, a contrário de outras, que soçobraram por o não conseguirem (exemplos dados por Jarred Diamond, no Colapso).
PS(II): Esqueci-me de inventariar na minha resposta ao seu comentário sobre os interesses em confronto em matéria do aquecimento global, a indústria nuclear (veja-se o que James Hansen diz da inevitabilidade da sua utilização)
Na resposta anterior cometi um lapso, quando disse que "o problema é o espaço de tempo entre os 50 mil e os 5 mil anos"; queria dizer entre os 10 e os 5 mil anos.
Parece-me, portanto, que afinando datas estamos de acordo.
O Homo Sapiens não tem um milhão de anos. Tem só uns 100 mil. E aos 50 mil deixou a África e em poucos milhares povoou o planeta. Eram caçadores-recolectores e concordo que não teriam meios para sustentar grandes haréns nem grandes proles.
É precisamente a agricultura do neolítico que o permitiu, por algum tempo - entre o seu aparecimento, há uns 10 mil anos (no Próximo Oriente), e o advento da escrita, há metade disso.
Aliás, se por cá o neolítico surgiu há uns 8 mil anos, seria interessante saber como se estruturavam as colectividades até chegarem os romanos, há uns 2 mil. Não sei se isso já foi estudado...
Quanto ao nuclear, a médio prazo não tenho nenhuma dúvida da sua inevitabilidade. Sobretudo rumo à fusão nuclear, que é o domínio da energia das estrelas.
E isto porque acredito piamente que o futuro da Humanidade é a galáxia ou a extinção. Começámos no corno de África, ali onde a floresta tropical dá origem à sevana e favorece os bípedes, e num instante planetário povoámos os mais recônditos locais do planeta. E já cá não cabemos. O instinto explorador e de crescimento é a nossa marca de espécie. Até porque o terreno ganho à morte nunca chega, e isso requer uma expansão permanente para lá do horizonte onde há ameaças.
Bem sei que isto é sonho, mas dá-me prazer e significado.
Meu caro
"Sobretudo rumo à fusão nuclear, que é o domínio da energia das estrelas.
E isto porque acredito piamente que o futuro da Humanidade é a galáxia ou a extinção"
Não poderia estar mais de acordo. Ou saímos daqui, ou estamos feitos. E teremos de fazê-lo rapidamente, porque a janela de oportunidade poderá fechar-se.
Fico-me por aqui - e irei passando por cá
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