sábado, janeiro 15, 2011

2ªs notas de rodapé sobre "O papel da I&D no grupo EFACEC"

Há duas semanas postei um texto que escrevera para a Administração da EFACEC - Sistemas de Electrónica há 14 anos e, como o texto já era bastante longo, procurei não o aumentar com esclarecimentos adicionais. Há dias escrevi umas notas de rodapé sobre dois dos aspectos focados naquele texto, elaborado na perspectiva da indústria nacional, sobre o papel da componente curricular nos doutoramentos e sobre a alienação na produção de "papers" seguindo as modas americanas. Hoje vou discutir outras duas questões tratadas naquele texto, mas antes quero adicionar uns esclarecimentos às últimas notas de rodapé.

Tenho a consciência que as notas que escrevi não me tornam popular entre muitos dos meus colegas académicos, mas não é minha intenção menorizá-los ou de alguma forma feri-los; o sistema é como é e cada um joga o jogo conforme as suas regras. O que eu pretendo é reflectir sobre o país e em como a Ciência o pode servir, algo que não faço como académico de carreira mas como cidadão interventivo - porque a Ciência em si
e neutra, mas a forma como a usamos não é. Obviamente, se puder contribuir para que os meus colegas questionem o que andam cá a fazer pelos contribuintes que os sustentam, mesmo que suscite a sua discordância, já não será mau. Da parte deles, em particular neste momento de profunda crise nacional, é tudo o que desejo.

Relativamente à importância que atribuo a uma forte componente curricular nos programas de doutoramento americanos, a razão talvez precise de ser explicitada: é que se o doutoramento for visto, como deve ser visto, apenas como a formação escolar de uma posterior carreira de Investigação fora da própria Universidade, e que é a perspectiva em que há 14 anos escrevi o texto para a EFACEC, então é claro que o doutorado deve ser capaz de trabalhar em assuntos diferentes do tema específico em que se doutorou. Para isso precisa de ter aprendido a investigar (papel propriamente da tese), mas também de ter background para o fazer em temas diversos do dessa tese, e é esse o papel principal da formação curricular pós-graduada.
Um colega meu que se doutorou nos EUA há umas décadas e que depois trabalhou uns anos numa grande empresa americana, contava-me que era regra testarem ali a capacidade do doutorado recém-contratado pondo-o a investigar numa área muito diversa da da sua tese, a ver como ele se saía...

Relativamente à produção de papers pelos académicos, é também de esclarecer que embora existam técnicas alienadas de maximizar a sua produção, alienadas por sacrificarem tudo ao número desses papers, nem todos os académicos que produzem muitos papers o logram dessa forma. Alguns conseguem ir mudando de assunto e mesmo assim publicar inovações em todas as áreas. Um modelo exemplar de tal académico foi o Prof. Carlos Portela que já aqui homenageei. Claro que destes não há muitos e um sistema meramente quantitativo de ponderação de papers não os consegue distinguir, e claro que uma actividade de engenharia que permita defrontar problemas reais de natureza diferente estimula essa versatilidade (como acontecia com Carlos Portela). Só gente com essa competência multi-facetada corresponde à ideia popular que fora da Universidade se tem do "Professor", o sábio...!
Infelizmente a Universidade nos últimos tempos tem optado pela orientação de ponderar os papers não pela sua diversidade temática mas pelo número de citações de que são objecto, o que é mais uma aplicação mecânica das fórmulas americanas: nunca em tecnologia haverá muitas citações a um trabalho verdadeiramente inovador feito integralmente em Portugal num tema importante (como sucederá se tiver resultado de um projecto feito com empresas nacionais), pelo simples facto de ser feito em Portugal! É como nos produtos comerciais: a "marca Portugal" é um handicap...

   1. A importância da ligação dos projectos académicos de I&D às empresas e à sociedade em geral

No texto escrito para a EFACEC afirmava a importância da ligação da Universidade às empresas, e exemplificava com o bom resultado de anteriores projectos de I&D feitos no âmbito de contratos entre a Universidade e uma empresa, concretamente a EDP; bom resultado em termos da utilidade posterior das pessoas ali formadas para a indústria. Esta é uma questão chave para que a I&D realizada por académicos - professores e formandos - possa fertilizar o desenvolvimento económico nacional, sobretudo se, como acontece por cá, a pós-graduação for pobre em componente curricular e na versatilidade que esta proporciona.

Para começar, importa que essa ligação Universidade-empresas se materialize em projectos de I&D contratados entre a Universidade e empresas. Os projectos devem ser suscitados por problemas empresariais e traduzir-se em Investigação associada à produção de Teses de pós-graduação, que é como na Universidade de faz a I&D, ligando-a sempre à formação.
Porém, uma perversão comum deste conceito é a interacção entre a Universidade e as empresas ser gerida por cúpulas institucionais desde o início, o que fatalmente redunda em contratos feitos por conveniência política, quase sempre por empresas monopolistas de produtos não-transaccionáveis, a quem os custos incorridos são indiferentes ou dedutíveis nos impostos (portanto pagos pelo contribuinte) e onde as nomeações das Administrações dependem do poder político.
Os resultados de tais projectos, geralmente apenas umas folhas de papel impresso, vão fatalmente para umas gavetas onde ficam a ganhar pó. Podem ser bons para as estatísticas (de parte a parte), podem trazer dinheiro à Universidade e publicidade às empresas, mas o seu resultado para o que me traz aqui, o desenvolvimento do país, é zero! Ou negativo, dado que alguém terá sempre de pagar os custos incorridos, e nunca será nenhuma das partes envolvidas nestes arranjos!
Os projectos devem, por isso, ser definidos por operacionais - os directores técnicos que nas empresas têm a responsabilidade tecnológica, e os professores universitários que irão gerir a I&D correspondente.
Claro que é essencial apoio superior a essa interacção, de ambos os lados (já aqui voltarei), mas têm de ser os operacionais a definir os projectos, e essa definição tem de ser interactiva, ela própria feita por aproximações sucessivas.
Por um lado porque muitas vezes os técnicos das empresas não têm uma ideia clara das alternativas tecnológicas, ou pelo contrário presumem que a têm e querem apenas usar os recursos humanos da Universidade como extensão dos que lhes faltam na empresa ("mão de obra barata"), e por outro lado porque frequentemente os académicos querem impingir um resultado qualquer que já desenvolveram e que pouca relação tem com os problemas da empresa, ou pelo contrário não têm recursos para responder às solicitações da empresa, seja mão-de-obra (formandos), seja conhecimentos, e comprometem-se com o que não podem realizar (para "sacar dinheiro"), .
Chegar a uma boa definição do que se pode e deve fazer num projecto de I&D Universidade-empresas implica acertar nisto tudo, e por isso frequentemente uma das partes, senão ambas, sai frustrada com os resultados - geralmente a parte empresarial, razão por que muitas empresas vêm tais parcerias como uma "despesa" e não como um investimento.
Obviamente que tudo será mais fácil quanto mais o Académico e/ou os técnicos da empresa conhecerem e respeitarem o mundo da outra parte, forem tecnologicamente competentes e negociadores honestos. O ideal é mesmo o Académico estar "embebido" no universo empresarial, mas associado ao seu desenvolvimento tecnológico e não, como por vezes sucede, em Administrações distantes de tal desenvolvimento, sendo por isso que a relação de consultoria técnica é das mais adequadas a essa simbiose.
Naturalmente também se pode defender que a presença de técnicos das empresas na docência universitária é outra forma de promover a ligação da I&D empresarial com a académica, mas isso raramente sucede: infelizmente, tal como as mais das vezes os académicos estão nas empresas em funções de Administração distantes do desenvolvimento tecnológico, também os técnicos das empresas vão às Universidades apenas dar aulas (e buscar prestígio) e não têm qualquer participação na actividade de I&D que ali se desenvolve.
Os casos de maior fertilidade nesta participação de técnicos de empresa na docência universitária são aqueles em que um doutorado em Engenharia faz uma carreira de grande criatividade nas empresas e só depois acaba na Universidade. Carlos Portela foi um desses, especialmente na parte da sua vida decorrida no Brasil. O "Papa" de uma das minhas áreas de interesse também. E nem me estou a referir aos Professores que, como Ferreira Dias e quando ainda não se fazia I&D em Portugal, criaram os conteúdos e métodos das disciplinas que então se ensinavam em função do que eram as necessidades da indústria nacional onde trabalhavam. Mas isto hoje não existe em Portugal (com a excepção de Renato Morgado na Univ. do Minho)!

Finalmente, dadas todas as muitas razões para que um projecto de I&D entre a Universidade e empresas falhe, importa ainda notar que além do entrosamento competente e honesto dos operacionais de ambos os lados, é também preciso o apoio das Direcções das partes.
Nas empresas, é obviamente preciso que as Administrações comecem por considerar a inovação tecnológica como importante na estratégia da empresa, e depois que saibam gerir os seus operacionais com sabedoria - mantendo-os ligados à terra, apoiando-os na defesa dos interesses da empresa contra os desvios académicos mas vigiando o espírito de quintinha, sabendo graduar as expectativas de carreira e os estímulos materiais (perante a concorrência de procura desses Recursos Humanos) e, sobretudo, sabendo integrar organicamente os elementos formados na Universidade nesses projectos.
Em áreas que constituam novos negócios da empresa, a criação de novas estruturas organizativas correspondentes é uma boa solução, mas terá de defrontar o despeito das estruturas e ambições já existentes.
Uma variante mais elaborada da má tendência por vezes existente nas empresas de "irem à Universidade buscar mão-de-obra barata" para projectos cuja definição já foi feita na empresa (mal ou bem), é a de, embora reconhecendo inicialmente a sua incompetência em determinado assunto que lhes interesse e darem, por isso, espaço à iniciativa universitária na exploração das soluções tecnológicas, terminado o projecto contratado e levados os graduados liquidarem a continuidade da experiência, por vezes até "apagando" o papel da Universidade nos sucessos alcançados e fazendo crer que eles foram obtidos no seio da empresa. Embora empresarialmente isto possa fazer algum sentido em termos de imagem, é uma falta de visão de longo prazo que liquida a sustentabilidade destas relações.
Invariavelmente as exigências depois do dia-a-dia na empresa levam à incapacidade de acompanhamento da evolução tecnológica que vai ocorrendo e, a prazo de meia dúzia de anos, no máximo uma década, todos os frutos do projecto ficam obsoletos - com a agravante da "terra queimada" deixada na Universidade ser depois muito mais difícil de voltar a lavrar.
É certo que estas empresas pensam, por vezes, que se e quando o assunto precisar de novo projecto de I&D poderão ir bater a outra porta; mas infelizmente o nosso país quase nunca tem outra porta com a mesma competência da primeira, quando o projecto na primeira correu bem, porque só por acaso a empresa encontra "know-how" que lhe seja útil e já criado em algum Professor ou grupo de Professores, e porque é exactamente este tipo de projecto que permite orientar os Professores para o tipo de tecnologia efectivamente necessária às empresas.
Mesmo que a empresa incentive o desenvolvimento do know-how de que necessita noutra Universidade por si preferida, levará muitos anos, se chegar a suceder, para que essa Universidade possa igualar as qualidades da que com ela colaborou inicialmente.
E menciono este tipo de prática empresarial na relação com as Universidades porque ela existe e é típica da EFACEC, por exemplo. Só em desespero de causa recorre à colaboração de uma Universidades fora do "norte" e, por melhor que esses projectos lhe corram, "mata-os" uma vez acabados tentando sempre que da "próxima vez" o projecto seja feito na FEUP. O INESC-Norte agradece mas é bom registar que com tal comportamento a EFACEC se comporta, relativamente ao que não é "norte" de Portugal, como uma empresa tão ou mais estrangeira que algumas suas concorrentes. Portugal é assim...

Quanto às Universidades... são outra longa matéria, para desenvolvimento em próximo post!

   2.  Os projectos europeus de I&D

 No post original sobre a EFACEC, mencionei o afluxo dos fundos europeus na viragem da década de 80 para a de 90, e em como o INESC se tinha especializado na sua captação, coisa com que a EFACEC devia competir, na minha opinião.
Ora esta questão dos fundos e dos projectos europeus é crucial para a contribuição da I&D das nossas Universidades para o desenvolvimento da nossa economia. É crucial mas tem sido quase sempre... altamente negativa!
Negativa porque tem desviado as Universidades e Institutos para-universitários da procura de ligações à realidade nacional, sem que os projectos desenvolvidos com tais fundos tenham sequer dado algum contributo útil à Europa. Ou seja, a participação nos projectos comunitários de I&D tem um alto custo de oportunidade (o custo da perda dos benefícios dos projectos nacionais que, por causa destes, se deixaram de fazer), e o único benefício que terão é a obtenção de fundos pelas Universidades e institutos afins, que reforçam assim a tendência a se pensarem como um fim em si mesmo - tal como acontece com todas as burocracias.
Não sou o único a colocar estas questões. Na mesma altura em que as colocava à EFACEC, em 1996, elas eram discutidas no Parlamento do Reino Unido, por exemplo.
Ora os fundos "estruturais" para I&D só constituem uma parcela determinante dos seus financiamentos para os países periféricos, como se pode ver neste relatório. E, também como se pode ver neste outro trabalho (há muitos), a correlação entre o uso destes fundos e o desenvolvimento económico nas regiões europeias não é positiva.
Como compatibilizar, se tal é possível, a captação dos fundos europeus com a aplicação da I&D ao desenvolvimento das empresas nacionais (ou localizadas em Portugal) e, portanto, ao bem estar do povo português?
Sem dúvida, começando por ter objectivos nacionais, uma estratégia nacional, um plano nacional e, depois, explorando oportunisticamente esses fundos e os projectos em que vêm. Oportunisticamente significa aproveitá-los para fazer o que realmente nos interessa, de acordo com a nossa própria estratégia, sem pena da Europa porque esses projectos nunca resultam em nada nem para a própria Europa. E sobre isto termino este post, com dois louváveis exemplos do oportunismo que defendo quanto aos fundos europeus:

Há cerca de 18 anos, uma sucursal da GE norte-americana em Espanha, onde esta instalara no tempo do plano Marshall uma fábrica de equipamentos de protecção de redes eléctricas, decidiu promover um projecto de modernização dos seus equipamentos com fundos europeus. Para isso organizou um projecto de I&D multi-participado, em que até Portugal entrou, a par de empresas francesas e alemãs. E, nesse projecto, foram de facto desenvolvidas novas tecnologias, mas o projecto não chegou à criação de nenhum novo produto. E não chegou porque, entretanto, outra jogada oportunista se desenvolvera dentro do oportunismo da GE: um grupo de técnicos dessa sucursal espanhola, com o apoio de outras entidades exteriores, abandonou a empresa quando o projecto estava perto do fim e criou a primeira empresa espanhola daquela tecnologia, a ZIV. Que tem sido um sucesso...

O segundo exemplo é nacional. Há 20 anos Portugal conseguiu participar num projecto europeu para o desenvolvimento de uma nova geração de Sensores e Actuadores Inteligentes e Distribuídos. Tratava-se de um projecto visando essencialmente a melhoria da segurança de algumas indústrias químicas perigosas italianas e de centrais nucleares francesas e, portanto, a participação de Portugal surgiu por pressão política, e não por necessidade técnica. Como tal a tarefa que foi atribuída a Portugal foi secundária, a da criação da "interface homem-máquina" do sistema. Esta interface requeria por um lado vizualizações gráficas, do que se encarregou a Universidade, e de uma Base de Dados ligada em tempo real aos sensores e actuadores, de que se encarregou a EFACEC. E porque se interessou a EFACEC por tal tarefa? Porque estava interessada em desenvolver precisamente o seu know-how e produtos de Bases de Dados para Tempo Real para os sistemas de SCADA de redes eléctricas, SCADA que tinham sido estrategicamente definidos como área de negócio da empresa. E tudo correu bem (excepto que não há notícia do projecto ter tido alguma aplicação às centrais nucleares ou às fábricas de química)...!

Pessoalmente, se a participação em projectos de I&D tecnológica com fundos europeus não se puder inserir numa estratégia oportunista destas, sou contra a participação nacional. Para Portugal, os custos de oportunidade que esses projectos implicam não compensam os dinheiros obtidos.

2 comentários:

Anónimo disse...

a interacção entre a Universidade e as empresas ser gerida por cúpulas institucionais desde o início, o que fatalmente redunda em contratos feitos por conveniência política

Isto demonstra a pouca importância dada pelos Gestores às questões técnicas. O importante é vender!
Também é importante mas uma empresa sem tecnologia própria de qualidade num mundo globalizado está condenada ao fracasso. O chineses, malaios, indonésios, entre outros, conseguem sempre fazer mais barato.


"Os projectos devem, por isso, ser definidos por operacionais - os directores técnicos que nas empresas têm a responsabilidade tecnológica, e os professores universitários que irão gerir a I&D correspondente."

Mas para isso os directores técnicos devem também ter alguns conhecimentos técnicos e não serem aqueles a quem saiu a "fava" na distribuição dos lugares. Obviamente sempre com um olho nos lugares dos colegas de Marketing, Comercial e Finanças.

Ou então a um individuo incapaz mas que até publica uns papers (feito pelo colaboradores ou no âmbito de alguma parceria com a universidade, obviamente). No entanto toma imensas opções erradas e nunca é avaliado por isso. Pudera... quem o avalia também não percebo dos assuntos.

Entendo que a avaliação de um director técnico não seja fácil. Mas pelo menos um inquérito de satisfação dos clientes com o produto.


"Só em desespero de causa recorre à colaboração de uma Universidades fora do "norte" e, por melhor que esses projectos lhe corram, "mata-os" uma vez acabados tentando sempre que da "próxima vez" o projecto seja feito na FEUP"

Este é o grande problema da EFACEC. Não é uma empresa pragmática. Anda sempre com estas tretas Porto-Lisboa.

Pinto de Sá disse...

Caro Anónimo,
Vejo que conhece bem a empresa.
As questões que aponta resultam todas da mesma raís: a circunscrição do poder de decisão tecnológico ao "norte", na verdade ao (grande) Porto, o que vai de Gaia à Maia. Poder-se-ia chamar a isso uma coisa que os irrita imenso, mas que assenta como uma luva: provincianismo!
Olhando para a História da empresa, compreende-se. Olhando para o seu Futuro, é trágico - para a empresa e para Portugal!