segunda-feira, agosto 03, 2009

Gestão da procura, "smart grids" e quem paga a factura

Muito a propósito do momento eufórico que vivemos, cheio de propaganda ao futuro radioso só com energias renováveis e "redes eléctricas espertinhas" (smart grids) que adaptem o consumo à produção, acaba de chegar aos nossos media uma notícia que já andou pelo New York Times e que mobilizou as hostes ecotópicas contra a "conspiração do grande capital monopolista". Concretamente, contra a EDF, a EDP francesa.
Comentei a notícia no Público on-line e a jornalista, a Senhora D. Lurdes Ferreira, uma esfusiante entusiasta da ecotopia, corrigiu-a e bem, aqui e aqui. Mas com novos erros, que também já lá comentei e que vou discutir convosco no seguimento.

Em França, uma empresa resolveu oferecer uma caixinha que desliga os consumos nas horas de ponta ou, mais exactamente, quando as tarifas estão caras por carência de produção disponível na rede. É exactamente este tipo de serviços que os "contadores espertinhos", ou smart meters, nos irão oferecer (ou impôr?) quando os ecotópicos tiverem reduzido toda a produção de energia a fontes renováveis e, em vez de haver produção que se adapte às nossas necessidades de consumo como hoje em dia, passarmos a ser nós que teremos de adaptar o nosso consumo às vicissitudes do estado do tempo.
Do ponto de vista do consumidor e neste momento, em França, que fazem de facto essas caixinhas? Desligam consumos como o ar condicionado (de longe o principal consumidor numa casa ou escritório, quando está ligado). Obviamente, isto significa que o ar ambiente vai aquecer, e é precisamente por não querermos isso que instalámos e ligámos o ar condicionado!
Se não quisermos gastar a energia do ar condicionado, o melhor é termos ventoinhas ou tirar as gravatas, como já aqui aconselhei. Mas se o quisermos, uma alternativa menos má será aceitar a referida desligação do ar condicionado apenas por uns minutos, digamos meia hora. E depois voltar a ligá-lo. Porquê?
Porque os interiores de edifícios têm uma inércia térmica considerável. Uma vez desligada a climatização, a temperatura evolui devagar, e ao fim de meia hora apenas terá subido alguns graus, o que pode ser suportável se durar pouco tempo. Mas depois, quando se voltar a ligar o ar condicionado, o termostato de regulação vai levar o aparelho, que normalmente trabalha por curtos períodos e depois se desliga por alguns minutos, a trabalhar ininterruptamente até repôr a temperatura no valor regulado inicialmente. Pode também fazer-se o inverso pouco antes de chegar a hora de ponta: arrefecer um pouco demais o ambiente, para depois se poder aguentar o aparelho desligado uma meia hora no início dessa hora de ponta.
Obviamente, a energia que se poupou durante a meia hora de desligação é inteiramente dissipada de novo durante o arrefecimento posterior (ou anterior) do equipamento. Nenhuma energia se poupa, no total. Então, onde está o negócio?
O negócio existe se o consumidor tiver uma tarifa bi-horária (no futuro ecotópico, a tarifa estará permanentemente a variar, sendo comunicada pela net aos tais "contadores espertinhos"). O negócio consiste em desligar o consumo à horas da tarifa mais cara, que são as horas de ponta, para o voltar a ligar quando a tarifa tiver mudado para mais barata, por terem passado as hora de ponta - ou antes desta, também.
Ora, porque é a tarifa mais cara nas horas de ponta?
Porque, para a satisfazer, a rede tem que ter centrais só para produzir energia nessas horas de ponta, e isso é um investimento pouco rentável para todos, razão porque é a própria dona da rede que desincentiva esse consumo encarecendo a tarifa nessas horas.
A principal vantagem das grandes redes interligadas é, aliás, precisamente a poupança de centrais de ponta, porque numa grande rede, como a europeia toda, quando o consumo atinge a ponta aqui não o está a atingir na Áustria, e vice-versa. Nos EUA o mesmo sucede entre as costas Leste e Oeste, que é onde reside a maioria da população e dos consumos.

Presentemente e no caso da França, as centrais de base, que trabalham permanentemente ao mesmo ritmo (a potência constante) são as nucleares. Por cá, são as a carvão. As centrais de ponta, capazes de variar facilmente a sua produção em função da procura, são essencialmente as hidroeléctricas, e em menor grau as de ciclo combinado a gás natural. As eólicas são quase totalmente imprevisíveis e, por isso, têm de ter outras hídricas e, sobretudo, a gás, permanentemente prontas só para lhes fazer reserva, caso falhe o vento. Portanto, reduzir as pontas de consumo deslocando-a para as horas de vazio não só não reduz energia nenhuma, no total, como aumenta a porção desta que vem das centrais nucleares e a carvão, em prejuízo da das renováveis hidroeléctricas!
Acontece que por cá, em Portugal, os fornecedores da energia são pagos pela encomenda, ou seja, mesmo que não cheguem a vender a energia das horas de ponta para as quais fizeram as centrais, recebem à mesma! Adivinhem quem paga? Não, não são só vocês! É também o défice, essa invenção maravilhosa que permite gastar sem ter com que pagar...! :-)
Mas em França não é assim, e os donos das centrais de ponta só recebem mesmo se venderem. Ora terem feito uma hidroeléctrica para satisfazer as pontas, e depois não haver consumo para ela por que não houve ponta, e não haver o mecanismo português de receber quer se venda quer não, é natural que tenha indisposto a EDF e que a ERSE lá do sítio lhe tenha dado razão!

Entretanto, e esta é a questão mais interessante, se este sistema em França efectivamente não reduz nenhum consumo de energia e até aumenta a porção proveniente das centrais nucleares em prejuízo das hidroeléctricas, porque se movimentam com tanta virulência os ecotópicos contra esta decisão da ERSE francesa?
Por uma questão de princípio que nada tem a ver com o actual sistema francês! Porque de facto eles querem poder controlar-nos o consumo de energia, pela verdadeira razão de quererem que o sistema produtor seja integralmente composto de fontes renováveis e, como tal, dependentes do estado do tempo, de se é dia ou noite, de se choveu ou não!!!
Só que, quando tudo provier de fontes renováveis, não haverá horas de ponta nem de vazio - tudo será altamente variável e imprevisível. E portanto, os tais mecanismos que se baseiam na antecipação das horas das tarifas serão em geral incapazes de "gerir a procura", e o que vai acontecer é que teremos mesmo de pagar as altas tarifas de quando não há vento, é noite e os rios estão secos. Isto se formos ricos, senão teremos de passar sem a electricidade.
Como já expliquei aqui!

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