Segundo acabo de ler num jornal, a Empresa de Electricidade da Madeira, EEM, estará a transportar eleitores até às urnas.
Numas eleições que se adivinham renhidas como nunca, gestos destes poderão significar a vitória ou não de Alberto João Jardim. Digo "poderão", porque nem sei se a notícia é verdadeira...
O que a notícia me fez recordar foi a minha única experiência de relacionamento com a EEM, em 1988, já lá vão uns 23 anos. Na altura eu ainda era muito intolerante perante a fraqueza alheia, vindo como vinha de tempos e experiências, na primeira metade dos anos 70, em que o nível de exigência normal era ser-se herói - herói ou proscrito, era a opção...
A história conto-a assim: a EEM defrontava-se com um problema na sua rede eléctrica em que, quando havia um curto-circuito numa das novas linhas de 60 kV da ilha, as protecções não só desligavam essa linha, como deviam, como também desligavam os cabos e linhas de 30 kV que alimentavam o Funchal, que ficava às escuras.
Na EEM pensavam que tinham um problema de selectividade de protecções e, como à época eu era considerado o especialista nacional no assunto, o mesmo veio ter comigo, depois de passar pelo INESC onde ninguém sabia como pegar naquilo. Continuou a acontecer, isso dos problemas difíceis de protecções virem ter comigo...
Antes de tentar analisar propriamente o sistema de protecções que a Madeira tinha eu, como um médico que começa por fazer um exame geral a um novo doente, resolvi fazer uma análise geral da rede eléctrica da ilha, para me familiarizar com ela. Distribuição do trânsito de energia pelas linhas e cabos, cálculo de curto-circuitos, até a estabilidade da rede estudei...
É um tipo de análise corrente em redes eléctricas, que requer programas especiais de computador a que, à época, em que ainda não havia PCs, e muito menos Internet, pouca gente tinha acesso.
Ora logo ao fazer essa análise prévia da rede percebi a origem do problema, que não era um problema de selectividade de protecções, tal como por vezes um aparente problema de rins está num foco infeccioso noutro orgão... !
O problema estava em que, tendo nós aderido à "Europa" e tendo começado a chegar os fundos europeus, a Madeira tinha também começado a fazer grandes investimentos na sua rede eléctrica, e tinha construído e ampliado um conjunto de pequenas hidroeléctricas, no extremo Ocidental da ilha, que ligara ao Funchal, a Sudeste, por linhas de 60 kV. As linhas de 60 kV eram, para a Madeira (como o são nos Açores), as "auto-estradas" da energia e, segundo constava, estas novas linhas tinham atravessado vaus e serras e até tinham sido utilizados helicópteros para a sua colocação, tendo sido inauguradas pelo próprio Presidente da ilha.
O que eu constatava com a análise do trânsito de energia na rede, porém, é que nessas linhas não passava energia praticamente nenhuma, enquanto as velhas linhas e cabos de 30 kV, que iam pela orla Sul da ilha, estavam perto dos limites das suas capacidades. E o que é que acontecia? Acontecia que sempre que havia um curto-circuito (coisa normal numa rede eléctrica) nessas linhas de 60 kV, levando as respectivas protecções a desligá-las, as antigas de 30 kV ficavam com a carga delas e entravam em sobrecarga, seguindo-se a sua correcta desligação pelas protecções respectivas.
O problema, portanto, estava na própria estrutura da rede eléctrica e na forma como aquelas linhas novas de 60 kV tinham sido adicionadas ao sistema da ilha. A rede não era capaz de suportar contingências, como se diz no jargão técnico da especialidade. Apesar de malhada, não tinha "segurança N-1"...
Procurando averiguar, pelo estudo suportado em computador, o que havia de errado, dei-me conta que as linhas tinham sido decididas sem que tivesse havido qualquer estudo prévio da rede resultante e tinham sido concebidas "a olho". De facto, era evidente que se tinha procurado que as linhas fossem curtas, para que a energia fosse preferencialmente por elas, mas elas tinham sido acrescentadas à rede pré-existente, de 30 kV, através de transformadores de 30 para 60 kV colocados nos seus extremos, e o que acontecia é que esses transformadores inseriam uma "resistência" em série com as linhas que impedia a passagem da energia - e ninguém tinha antecipado isso!...
Pouco diplomata como eu era nesse tempo, fiz um relatório a explicar a situação, e a propor medidas correctivas na estrutura da rede, as quais teriam de anteceder qualquer revisão do sistema de protecções. E lembro-me que teci algumas considerações menos elogiosas sobre a falta de um estudo prévio num investimento daquela natureza...
Claro, nunca mais na vida fui contactado pela EEM e nem um "obrigado" recebi por este estudo!
Sei que depois disso a EEM implementou algumas das medidas correctivas da rede que eu propus e muitas outras, e que veio a estabelecer colaborações com outros académicos, mas comigo é que nunca mais quis nada!
Eu, pelo meu lado, por muito tempo considerei que a Madeira era um caso de 3º Mundo, porque se é certo que não tinha que ter especialistas capazes de lhe fazerem estudos daqueles, sempre poderia ter seguido o exemplo dos Açores que, em situação semelhante, recorrera à consultoria externa (ainda que de uma empresa estrangeira). E desde aí sempre achei que havia uma enorme diferença de mentalidade e cultura entre os dois arquipélagos...
Acabei por nunca ir à Madeira, até hoje.
A última vez que passei pela Madeira foi há mais de 50 anos, era ainda criança, em viagem de paquete para Angola. Lembro-me de o barco ancorar ao largo e virem até ele uns pequenos "gasolinas" com uns miúdos que pediam moedas aos passageiros do paquete. Os passageiros atiravam as moedas lá de cima e estas caíam no mar, e imediatamente os miúdos mergulhavam para as apanhar na água.
Aquilo impressionava-me, nos meus 6 ou 7 anos de idade. O mar era enorme e os miúdos, quase da minha idade, eficazes a apanhar as moedas.
Sei que essa miséria acabou e talvez vá de novo à Madeira este fim de ano... Hoje sou muito mais tolerante do que era em 1988 e o povo da ilha vai precisar da nossa solidariedade!
12 comentários:
Só por curiosidade,
Se o transformador de saída da linha de 60Kw tivesse uma tensão de saída um pouco mais alta (ou de entrada um pouco mais baixa ou o equivalente a uma ou outra no transformador de entrada) não aumentaria a 'apetência' da corrente por circular pela linha nova?
Poder-se-ia ter colocado à entrada da linha um transformador que tivesse um outro secundário para alimentar a linha velha?
Eu estudei essas opções todas, Rio D'oiro. Mudar a relação de transformação, algo fácil de fazer com o comutador de tomadas dos transformadores, criava uma corrente de circulação reactiva que acrescia alguma coisa a corrente nas linhas de 60 kV, mas não a potência, essencialmente activa, que lá devia circular.
Não, a solução era mesmo alterar a rede, não havia outra hipótese.
E já agora digo-lhe a que conclusões cheguei, na altura.
1º tentei forçar parte da potência da principal central, Câmra de Lobos, a ir por essas linhas, seccionando o respectivo barramento de 30 kV, onde havia transformadores 30/60. Porém, esta solução barata também não funcionava, porque a maior parte da potência da central a Diesel passava de facto para os 60 mas voltava de novo para os 30 pelo outro transformador e barramento, porque a impedância do transformador aí de 30/60 + a dos cabos de ligação ao Funchal ainda era menor que a da linha de 60 + a do transformador 60/30 no Funchal.
A solução exigia, por isso, também a ligação directa ao consumo do Funchal da linha de 60, o que por sua vez tinha vários problemas: ou havia distribuição a 60 kV na cidade, mas á época os cabos de 60 kV ainda eram muito caros (hoje são banais); ou se usava um transformador 60/30 que se tirava de outro lado (foi a minha proposta se bem me lembro), para ligar directamente ao consumo.
Mas sei que a solução imediata da EEM foi outra, tipicamente de um aluno de negativa: passaram a explorar a rede em malha aberta, e instalaram um SCADA de última geração e caríssimo para repor a rede em serviço mais depressa, em resposta aos inevitáveis frequentes apagões de uma rede radial, que de qualquer modo já vinham a ter...
Penso que alterando a razão de transformação, em p.u. fica igual, só muda Vb e o resto dos parâmetros compensam... A não ser a preciosidade de, usando menos "bobine" de transformação teremos ligeiramente menos reactância de fugas... Não é assim professor?
Mas então a linha de 60kV tinha ela própria consumo ou estava só em "paralelo" com a linha de 30 para fechar a malha?
Como já já notei ao Rio d'Oiro, alterar a relação de transformação de um transformador só muda o trânsito de reactiva. É um conceito base que se aprende em análise de redes e ali a análise confirmava: a regulação de tomadas de um transformador só muda a tensão e/ou o trãnsito de reactiva.
As linhas de 60 kV estavam em paralelo com as de 30 kV, como expliquei. No caminho, de Oeste para Este, havia centrais ligadas, mas estavam todoas ligadas à velha rede de 30 kV. As linhas de 60 foram acrescentadas com transformadores de ligação aos 30 kV, em paralelo com a rede de 30 mas, como numa ilha as linhas são curtas e os transformadores relativamente pequenos, a impedância destes é claramente dominante.
Portanto, a potência continuava a ir toda pelos 30 kV, e para mudar isso ou se desfazia o paralelo (que foi o que a EEM acabou por fazer), ou se ligava geração e carga directamente aos 60, e não aos 30 como estava. É uma opção vulgar no planeamento de redes - que ali não existira.
Em teoria poder-se-ia usar um transformador desfasador para regular a potência activa, mas não sei até que ponto é que economicamente isso seria viável...
Da teoria que se aprende no curso de electrotécnica até à realidade prática ainda vai uma distância colossal (aproveitando o termo que está em voga)
"alterar a relação de transformação de um transformador só muda o trânsito de reactiva"
Segundo percebo, a potência vai enfiar-se no caminho de volta baralhando a fase, tornando os transformadores em (digamos) apenas bobinas. Uma confusão do catano.
Eu não trabalho com potências (apenas pequenas bobinas) mas às vezes faço umas simulações em ORCad e frequentemente (quase sempre) o que acontece vai para além do que eu espero. As bobinas parecem existir apenas para chatear a malta.
Fazer comutações com bobinas à mistura ... cruzes canhoto.
"não há nada de mais prático do que uma boa teoria"
Verdade e a preguiça não é boa companheira.
Não se usam transformadores desfasadores. São precisamente uma coisa que se aprende na teoria, mas que não se usa na prática. São muito complexos e caros. Só sei da sua aplicação em certas zonas da rede de Muito Alta Tensão entre Chicago e New York...
E eu sempre procurei encontrar soluções simples e baratas para os problemas, quando possível. É para isso que a engenharia serve...
Esta história é de facto um reflexo do país. Investimentos de grande dimensão decididos em cima do joelho para aproveitar uns fundos... Mas claro, sempre com alguma comparticipação nacional.
Gostaria que conseguíssemos aproveitar os fundos para melhorar a vida das populações portuguesas. E não considero fazer estradas que de futuro ninguém usa (andar de carro vai ser um luxo a partir do próximo ano) melhorar a vida de uma população (apesar de provavelmente alguns "chicos-espertos" estarem muito melhor por causa disso).
Quanto aos transformadores desfasadores também os temos cá em Portugal. A REN encomendou 2, um para a interligação de Cedilho e outro, penso que, para Aldea D'Avilla.
Sei que o de Cedilho já foi instalado na subestação da Falagueira. Mas que ainda não se encontra activo (e com o decréscimo de consumo em Portugal actual e esperado para os próximos anos - a electricidade será outro produto de luxo - provavelmente demorará a ser usado...). Em Espanha também se deverá assistir a uma redução do consumo.
Obrigado pelo esclarecimento :)
Já agora outra questão: uma outra opção não seria também retirar o transformador e passar o corredor de 60kV a 30kV ficando algo parecido com terno duplo? Não me estou agora a lembrar de nenhum incenveniente para o "downgrade" de tensão a não ser o aumento de perdas...
O problema é que uma linha de 30 kV só leva metade da potência da de 60, para condutores da mesma secção e, portanto, da mesma corrente... além, claro, da completa impraticabilidade de tal substituição!
@último anónimo
A REN possui 2 ATD de 450/150 e 450MVA na subestação da Falagueira que entraram em serviço em 2006 e 2009; na subestação de Pedralva também temos mais dois de 400/150 e 450MVA que entraram em serviço em 2008. Dados da caracterização da RNT a 31 de Dezembro de 2010.
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