O Público, em particular, publica extractos de uma interessante entrevista com um conhecedor do sector, um homem com uma visão estratégica a que talvez não seja alheia a sua condição de militar, e que explica como toda a Europa, e Portugal em particular, foram perdendo competividade para a indústria asiática, ao longo deste último terço de século, até se chegar ao ponto onde se está hoje.
"As crises económicas cíclicas desde 1973 fizeram reduzir a procura e desviar a indústria da construção naval desde a América do Norte e Europa para a Ásia. Mais recentemente a China e outros países vizinhos tornaram-se construtores com elevada quota de mercado”, explica o Contra-almirante Gonçalves de Brito. "Maior produtividade, menores custos de produção e condições de mercado distorcidas”, aponta este responsável como causas desta evolução, explicando que “A importação de soluções desenvolvidas no Ocidente permitiram a implantação da Ásia como principal centro da indústria naval de grandes navios e de embarcações de serviços”. A Europa foi relegada para “nichos de navios específicos de alta tecnologia, incluindo navios militares e equipamento para plataformas de exploração oceânica”.
E, quanto a Portugal especificamente, diz:"Portugal apenas deverá aspirar à construção de navios em nichos dentro dos nichos, aproveitando situações pontuais de ocasião, potenciando a diplomacia económica e valorizando a entrada na construção de navios militares de tecnologia média, marítimo turísticas e mais algumas outras oportunidades que aparecem esporadicamente”, e que “neste momento a indústria naval portuguesa debate-se com o problema adicional de falta de profissionais qualificados”. “Mesmo que ocorresse uma viragem nas perspectivas de mercado de procura, a incapacidade de resposta seria um facto face à dita falta de recursos humanos qualificados e à descapitalização dos estaleiros que limita a respectiva actualização tecnológica e a inovação”, assume, resumindo:“Portugal deixou de ser competitivo”. "O país não tem custos de produção baixos, produtividade ou sequer capacidade de gestão adequadas. E não dispomos de centros de excelência que disponibilizem rapidamente projectos técnicos inovadores e atractivos para os armadores, por total descapitalização das poucas estruturas de engenheiros e projectistas existentes."
Este retrato é comum a outros importantes ramos da indústria portuguesa, e é por isso surpreendente que o nosso contra-almirante, depois de enunciar com sabedoria a falta de especialistas, de tecnologia, de inovação e de centros de excelência no sector, que nos capacitem para competir nos nichos de mercado de alta tecnologia ainda possíveis, alvitre como solução o salto para... as energias renováveis! Concretamente, propõe ele: "Sobretudo grandes estruturas oceânicas de energia, investigação e recolha de matérias primas para as águas sob controlo nacional, onde seja importante minimizar a distância do local de construção ao local de utilização"!
Ora se já nem navios sabemos construir, como poderemos resolver isso saltando para a inovação em tecnologias que ainda não existem? Pergunta que associo à de como poderá o mar, esse grande desígnio que por vezes nos apontam, passar de uma miragem a alguma realidade?
Na verdade, este salto no vazio como resposta ao nosso atraso tecnológico foi apanágio da nossa governação nos 15 anos terminados, e o seu maior expoente foi o "momento em que se fez História" com a inauguração da central das ondas da Póvoa do Varzim pelo inacreditável ministro Manuel Pinho, como noticiei aqui em tempos!
A verdade, infelizmente, é que a nossa construção naval nunca soube muito da ciência moderna dessa construção.
No tempo em que dividíamos os mares com Espanha e a Ribeira das Naus era um imenso complexo fabril, a técnica da construção naval, que dominávamos mas em que pouco inovávamos, era muito empírica e baseada em princípios de simetria pouco científicos, como Franklin Guerra nos recorda na sua História da Engenharia em Portugal. Quando a engenharia naval veio a ganhar raízes na matemática e na física modernas, no sec. XVIII, dando origem aos velozes brigues do sec. XIX que faziam de Lisboa à Índia em 3 meses, contra os 6 meses das nossas naus, já há muito que Portugal deixara de dominar os mares ao mesmo tempo que viria a passar ao lado dessa revolução industrial...
O boom da construção naval em Portugal no início dos anos 70 (na verdade, essencialmente reparação naval), resultou de duas circunstâncias: a excelente posição geográfica do país, que faz com que todos os petroleiros que abastecem a Europa passem ao largo da nossa costa, e o fecho do canal do Suez de 1967 a 1975, em resultado da guerra dos 6 dias e do bloqueio egípicio decorrente. Este bloqueio promoveu a construção, com destaque para o Japão, de superpetroleiros que passaram a ter de fazer a rota do Cabo, contornando a África, para trazerem do Médio Oriente o precioso líquido. Os estaleiros, cujos operários bem pagos eram baluartes apetecidos da esquerda revolucionária dos anos 70, chegaram a ter de facto um peso económico relevante mas, surpreendentemente, Portugal só veio a ter a sua primeira licenciatura em Eng.ª Naval em 1981, quando os estaleiros já tinham entrado em decadência acentuada!...Presentemente, coordena esta licenciatura um velho amigo meu e colega do liceu que se me queixa da pouca aplicação que encontra em Portugal para a I&D em que se especializou (doutorou-se há muito na Holanda, com que depois colaborou por muitos anos). E, por isso, ele também tem procurado novas áreas de aplicação dos seus conhecimentos, como as energias renováveis.
Temos, pois, uma construção naval agonizante e sem know-how, e uma tecnologia universitária que não encontra aplicação industrial.
E há quem imagine resolver isto, tanto do lado da indústria como da Universidade, saltando para novas áreas que não existem...!
5 comentários:
Caro Professor,
Hoje li a matéria que passo em link e me recordei de lhe a enviar, que ao aceder ao seu blog deparo com um tema que aborda o transporte marítimo também.
Abraço e saúde para si e todos os seus
Elio Tavares
A questão de que Portugal tem de se virar para o mar, porque é lá que está a riqueza, é apenas uma desculpa para deixar tudo na mesma, já que seria tão caro criarem-se as devidas infraestruturas. A riqueza está em todo o lado quer seja no mar, terra ou ar, é preciso é que se criem condições para haver investimento. Nomeadamente acabar-se com a burocracia, simplificar-se o sistema de impostos, acelerar a justiça e a sua execução, aumentar a exigência na educação desde o ensino básico até ao superior... Quando as condições para haver investimento são criadas, o dinheiro aparece...
"E há quem imagine resolver isto, tanto do lado da indústria como da Universidade, saltando para novas áreas que não existem...!"
Não existem, salvo seja. Lá porque o PROTOTIPO da Pelamis em Portugal foi um fiasco, não quer isso dizer que esta fonte de energia renovável não exista! Manuel Pinho claramente não percebeu a diferença entre um protótipo e uma central de produção de energia para fins comerciais... Criaram-se demasiadas expectativas, para um projecto que podia falhar. Com certeza que os engenheiros perceberam onde falharam e os próximos protótipos já funcionarão melhor. (aplicação do método científico). Existem inclusivamente outros projectos bem conhecidos de aproveitamento da energia das ondas tais como o da imove e o da CETO.
Evidentemente, quando disse que as apostas que se apresentam como alternativa ao fim da construção naval não existem, refiro-me a apostas que substituam os empregos e a criação de riqueza perdidos, ou seja, refiro-me a apostas em tecnologias rentáveis.
Ora não há nada nas ondas que sequer funcione, quanto mais que seja lucrativo!
O Anónimo fala em "outros projectos" bem conhecvidos, mas mostra é que não conhece a matéria. Se tivesse lido os documentos para que linko no hyperlink que inseri no post, estaria um pouco mais informado: http://a-ciencia-nao-e-neutra.blogspot.com/2009/12/central-das-ondas-do-governo.html.
Assim como se alguma tivesse feito I&D com propósitos industriais e com sucesso, como eu fiz, teria a noção de que de um protótipo conceptual até uma tecnologia rentável vão, na indústria, em geral décadas!...
Parece-me que a Escola Naval ministra cursos de engenharia naval desde há muitos anos.
Gosto sempre de dar uma passada por aqui, seu blog traz ótimos posts!
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