sábado, julho 28, 2012

I&D para a COMPETITIVIDADE: parte VII - Cenários de Futuro

"Se esta crise for uma crise de rearrumação da globalização, quem estiver cá a governar vai ter de exercer funções que antes não eram precisas por causa da Europa. ...As pessoas espantam-se que os dirigentes políticos tenham perdido qualidade. Era inevitável. Era um grupo que devia apenas seguir o que se decidia em Bruxelas, não era preciso mais." Félix Ribeiro, em entrevista de Outubro de 2011.

No âmbito desta reflexão sobre a política nacional de I&D, extravasei do domínio limitado a que gostaria de me circunscrever para reflectir convosco sobre o seu contexto. Isto porque os debates e textos públicos sobre a presente situação nacional andam demasiado centrados nas Finanças e em ideologia, menosprezando a economia real que lhe subjaz e à qual a I&D tecnológica deveria servir.
E, como partilho a crença iluminista de que as ideias se devem avaliar por si próprias, apesar de não ser economista encartado aqui venho expor as minhas à vossa consideração. Aliás, nesta reflexão acabei por redescobrir alguém que já há 42 anos me tocara muito; nesta sua entrevista de 2010 ele sintetiza bem o seu pensamento, de que o meu é apenas um grosseiro esboço.

De caminho, e sobre a interacção que existe entre o nosso problema económico de fundo, que redundou numa economia privada e em particular numa Banca vivendo de crédito externo, mais uma excessiva despesa pública baseada em défices, cito o FMI, quando explica: "The euro area crisis is in part due to strong feedback loops between sovereign states and national banks: banks lend to their governments; at the same time, governments are the ultimate backstop for the banks. When governments face difficulties borrowing from capital markets at a reasonable cost, banks also face funding problems".

Como expus na parte V desta série, é o endividamento geral da nossa economia, a substituição do trabalho pela "financeirização", num longo plano inclinado que se iniciou por volta de 1993 - e que ao usar o Estado como fiador esbarrou com a secagem de crédito quando este fiador por sua vez perdeu a credibilidade -, que justifica a maior parte da recessão, e não tanto os actuais agravos fiscais do Governo ou os cortes da despesa pública.


O problema pode, aliás, ser mais grave do que é publicamente ventilado, porquanto a somarem-se aos "project finance" em que se basearam da construção das auto-estradas às eólicas, e cujos compromissos financeiros servem agora para reclamar que não se mexa nesses "contratos" para não criar mais problemas à Banca (que por sua vez financia o défice do Estado), muitos investimentos dos últimos anos foram temerariamente especulativos e constituem uma bolha, como alguns PIN ("Projectos de Interesse Nacional") turísticos, agora em discreta falência...

Que a presente crise de falta de liquidez nas empresas é derivado de outro problema maior, o da descapitalização geral da economia que foi disfarçada com endividamento externo e acompanhou a sua perda de competitividade, reflecte-se nas recomendações da troika que, ao preocupar-se com a sustentabilidade da nossa "cura", tem prescrito a redução das rendas dos sectores que absorveram improdutivamente o capital que tínhamos e não tínhamos - sem ser atendida, até agora...

"a ANEOP [Associação Nacional dos Empreiteiros de Obras Públicas] fez uma publicação maravilhosa que dizia o seguinte: a construção, ela própria, representa 8% do PIB em 2009; o cluster da construção no sentido mais alargado - matérias de construção, promoção imobiliária, serviços ligados à habitação, obras públicas - representa 18% do PIB e absorve 72% da totalidade do crédito concedido pelo sistema bancário. O que sobra é para as PT, as EDP e o resto é nada." Félix Ribeiro, em Entrevista de Agosto de 2010.

Como justifiquei na parte VI desta reflexão, há boas razões para recear que não haverá eurobonds ou qualquer outro mecanismo que coloque a Europa germânica a retomar o financiamento do nosso endividamento. E, sendo assim, de uma forma ou de outra iremos mudar de vida, restando saber se o faremos sem rumo ou se será possível traçar uma rota em que faça sentido haver sequer uma política de I&D.

1. O cenário de continuidade, ou sem estratégia

Sem uma estratégia que atraia volumes colossais de investimento directo estrangeiro em novas actividades transaccionáveis, não será possível a reanimação da economia em termos capazes de absorver, com rendimentos decentes, o desemprego maciço que pela primeira vez sofremos na nossa História.
Medina Carreira tem a noção deste facto e tem sido incansável a reclamar as pré-condições indispensáveis a tal investimento: desburocratização e funcionamento eficaz da justiça, nomeadamente.
O actual Governo, pelo seu lado, parece acreditar que a baixa de salários resolverá o problema. Na impossibilidade de desvalorização cambial, a fórmula encontrada é a da facilitação dos despedimentos para que depois os desempregados possam ser recontratados por salários "ajustados". Mas, aos empresários a que oiço falar sobre emprego, não vejo queixas sobre a legislação laboral: o que lamentam é a falta de qualificações profissionais dos jovens, e também a sua atitude frequentemente displicente!...

Por isso, embora algumas actividades possam ser viabilizadas com salários mais baixos, serão sobretudo onde hoje impera a mão de obra imigrante, que no entanto também ela se está a ir embora. Se os salários baixos fossem, hoje em dia, a condição essencial de atracção do investimento estrangeiro, a África sub-sahariana estaria cheia de investimentos a explorarem mão de obra intensiva...

Aliás, observando a fileira das nossas exportações, é difícil acreditar que o nosso calçado, por exemplo, possa voltar a recuperar da sua actual quota de 1% nas exportações, baixando os salários (de novo com trabalho infantil?) a ponto de serem competitivos com os indianos. O mesmo sucede com qualquer outra das nossas exportações, não esquecendo que nas que dependem de talentos, como o software, os temos poucos e o norte da Europa é ávido por eles...

Na verdade, o investimento em indústria, o tipo de actividade criadora de emprego maciço para o tipo de trabalhadores pouco qualificados que temos, gira hoje em dia na Europa à volta da Alemanha, e por isso mesmo se deslocou para mais perto dela, para os países de mão de obra mais barata e qualificada que a nossa mas também mais próximos, tendo vindo a desinvestir dramaticamente em Portugal!
A questão da proximidade poderia talvez ser atenuada com uma ferrovia de alta velocidade para mercadorias (e não pelo TGV). A Auto-Europa, que tem grandes trocas de componentes e veículos com as fábricas-mãe, tem repetidamente insistido que preferia isso a qualquer redução de carga salarial!
Porém, apesar do actual Governo ter acertadamente decidido a substituição do TGV pela ferrovia de mercadorias, acaba de definir que o fará na bitola ibérica, inviabilizando assim os "comboios directos" para a Europa Central!...
Não parece, portanto, estar no horizonte qualquer motivo para que o capital alemão volte a preferir Portugal como destino de investimentos industriais expressivos!

Conhecendo bem esta dificuldade em atrair investimento alemão, Félix Ribeiro e o Departamento de Prospectiva e Planeamento (DPP) do Ministério da Economia em que ele trabalhava recomendavam, em 2004 e antes do agravamento de todos os erros de que ele já prevenia, a procura de investimento directo estrangeiro em países como os EUA, nórdicos e asiáticos. Parece evidente, porém, que as excelentes análises daquele organismo caíram em saco roto...

Entretanto, convirá tomar nota de que o mais recente investimento industrial asiático na Europa começou há 4 meses a produzir nas suas fábricas os primeiros bens: os automóveis da... Great Wall Motors chinesa! O país onde esse investimento foi feito é o de mão de obra mais barata, e ainda assim mais próximo dos mercados europeus de destino que Portugal: a Bulgária (na foto, a festejarem)!


O rendimento médio da Bulgária (PIB nominal/capita), que ainda tem moeda própria, é 30% do nosso, embora em paridade de poder de compra seja de 60%. Este será o referencial de rendimentos a considerar, portanto, se a aposta competitiva de Portugal se basear apenas no custo do trabalho...

Será de notar, também, que desde que a Bulgária perdeu o assistencialismo estatal e se inseriu no comércio mundial, em 20 anos a sua população reduziu-se em 18%, de 9,0 para 7,36 milhões de habitantes. A juventude emigra muito, mas sobretudo os que ficam não têm filhos. Ora para Portugal também já há quem preveja a sua extinção em perto de 2 séculos...

Entretanto, num recente documento prospectivo (2009), Félix Ribeiro parece já ter desistido de um Portugal industrializado e, cenarizando para 2025 um país predominantemente turístico, baseado no "produto sol-praia", aponta como a via mais fácil e que menos engenho requer a da "República Dominicana", que ele imagina assim, com visível boa vontade:
  • Portugal seria um destino turístico com a sua competitividade assente na exploração de amenidades (golf, sol praia, desportos náuticos e desportos radicais);
  • Portugal seria uma economia de acolhimento de actividades, entidades e eventos, sobretudo orientados para os sectores do entretenimento e lazer, incluindo uma forte componente de gambling; Lisboa tornar-se-ia na capital do jogo da Península Ibérica; o Ribatejo tornar-se-ia no principal pólo ibérico de corridas de cavalos;[Nota: Félix compara a utilidade económica do TGV com a que teve o comboio da linha de Cascais um século antes: servia para os lisboetas irem ao Casino Estoril...]
  • Prosseguiria a tendência de desindustrialização, com excepção dos pólos de indústrias pesadas energéticas localizadas na sua fachada atlântica e da subcontratação das indústrias ligeiras e trabalho intensivas do Norte do País por parte de Espanha (Galiza e Castela Léon) e de alguns fabricantes de consumíveis e dispositivos de saúde;
  • Portugal estaria bem posicionado na exportação de produtos ligados à agricultura de especialidades e às energias renováveis.
Resta esclarecer que o rendimento per capita da República Dominicana é actualmente 25% do nosso (nominal), 40% em poder de compra...

Entretanto e considerando a "febre africana" que agita alguns meios, noto que Félix Ribeiro é algo céptico quanto à sustentabilidade, a prazo, das apostas no Atlântico Sul.
Se já relativamente às vagas de investimento na América Latina feitos em companhia espanhola, há 15 anos, Félix os achava arriscados face à relativa instabilidade dessas regiões (os europeus do norte investiram, em paralelo, mas para a América do Norte e a própria Europa, diversificando a carteira de destinos), quanto à aposta em África e em particular em Angola, considera-a "de emergência".
No entanto, há que recordar que foi sempre por aí que o país historicamente andou, e que por outro lado o próprio Félix Ribeiro vizualisa um grande futuro económico para o Atlântico Sul, dadas as imensas reservas de hidrocarbonetos que ambas as suas orlas marítimas possuem; transformar isso em benefício económico para Portugal é que será mais difícil, para além da simples emigração...

2. Os cenários de recuperação e modernidade

A própria ideia de "ter uma estratégia" parece exótica aos adeptos (wishful thinkers) do regresso ao "antigamente". Tal acontece por pensarem, e não saberem pensar doutro modo (vd. citação de abertura deste post), que a nossa integração no federalismo europeu era caso arrumado, e que por isso bastava seguir bem-comportadamente as directivas de Bruxelas para que o crédito ilimitado a juros irrisórios estivesse garantido. Foi certamente por pensar desta forma que o actual Governo extinguiu, já no início do ano corrente, o Departamento de Prospectiva e Planeamento do Ministério da Economia, dispersando os seus quadros.
O problema é que o sonho de viver assim e que julgávamos ser o nosso "destino europeu", com grande probabilidade acabou!
No seguimento, divulgo algumas propostas de Félix Ribeiro que, longe de sofrer de resíduos soviéticos, é um admirador da capacidade de inovação americana e do "modelo de capitalismo anglo-saxónico".

2.1. O cenário "Florida da Europa"

"...uma hipótese que nós chamamos “Florida”, onde vamos essencialmente lutar para estar nas correntes onde passam as pessoas e para estar em actividades que têm uma forte componente turística, mas com muito engenho. Se não formos capazes de criar ou reciclar actividades que tenham esse engenho e apostarmos exclusivamente na movimentação de pessoas, estamos no cenário “República Dominicana”, portanto seremos um fornecedor de serviços turísticos relativamente mais desqualificado." Félix Ribeiro em entrevista de Maio de 2010.

Perspectivando ainda um destino essencialmente turístico, Félix aponta alguns cenários mais exigentes mas bem mais promissores do que o da "República Dominicana da Europa" que atrás referi. São eles os dos cenários "Florida Europeia" e "Flandres do Sul". Descrevendo o da Florida:
  • Portugal transformar-se-ia num sofisticado destino residencial para os europeus do Norte da Europa e um destino turístico atraente para norte-americanos easiáticos;
  • Portugal veria a concretização de uma variedade de pólos de atracção que serviriam um turismo com forte componente de animação cultural – ex: parque temático dos Dinossauros, pólos museológicos dos Templários/Ordem de Cister/Casa de Borgonha; ligações de Portugal à Ásia, etc.;
  • Portugal passaria a ter uma forte componente de serviços de saúde e reabilitação para estrangeiros, com base na atracção de clínicas de renome internacional e de fabricantes de dispositivos médicos;
  • Portugal transformar-se-ia num pólo europeu de indústrias culturais e do audiovisual;
  • Portugal atrairia um conjunto de actividades aeronáuticas e do espaço a localizar em parte no Alentejo; assistir-se-ia a uma intensa exploração das energias renováveis e das suas tecnologias, com destaque para a energia das ondas e uma aposta na exploração oceânica;
  • Portugal não conseguiria atrair operadores globais na movimentação de mercadorias que prefeririam localizar-se em Marrocos, utilizando Tânger como grande plataforma de movimentação no Atlântico/Mediterrâneo e os portos espanhóis do Mediterrâneo como acesso ao centro da Europa, aproveitando a rota Ásia/Europa pelo Canal do Suez.

O cenário "Flandres", região europeia que partilha com Portugal a proximidade de aeroportos com portos de águas profundas, junta ao turismo de qualidade (ser o lar de 3ª idade da Europa), uma reanimação da indústria (que, sem os investimentos alemães ocorridos na Auto-Europa, Siemens, Boch, etc, estaria ainda essencialmente ao nível da dos anos 60). Este cenário é o que efectivamente nos permitiria assegurar um nível de vida decente e bastas oportunidades para a I&D tecnológica ajudar a desenvolver o país:
  • ...assistir-se-ia ao renascimento industrial do Norte – produtos leves de elevado valor acrescentado – dispositivos médicos, electrónica, agricultura de especialidades, moda e a uma Renovação Industrial no Sul – parcerias euro-asiáticas no automóvel e expansão das indústrias aeronáuticas;
  • Portugal transformar-se-ia num importante fornecedor energético do sul da Europa a partir de Sines, onde se instalariam novas unidades de desliquifação do gás natural e centrais de ciclo combinado;
  • O complexo portuário/aeroportuário/logístico do sul de Portugal (Novo Aeroporto de Lisboa; novo terminal de contentores de Lisboa na Trafaria/Plataforma logística do Poceirão) estaria ligado à Europa Central (Rhone Alpes/Suíça- Alemanha do Sul);
  • Portugal seria sofisticado destino residencial para os europeus do Norte da Europa; uma variedade de pólos de atracção que serviriam um turismo com forte componente de animação cultural e de indústrias criativas.


2.2 Incremento da Competitividade geral

 Numa das sua últimas intervenções públicas (Março de 2011), pouco antes da intervenção da troika, Félix Ribeiro propunha um reforço geral da competição nas actividades nacionais, como modo de vitaminar a eficiência e a busca de soluções inovadoras. A vitaminação de Félix Ribeiro não se limita à economia privada, e transcrevo aqui algumas das suas propostas que facilmente reconheceremos corresponderem a uma "americanização" moderada do nosso estilo de vida: 

A) Uma translação do Sector Não mercantil para o Sector Mercantil “Não Transaccionável",
que favoreça uma consolidação orçamental sustentada, um ganho de eficácia e eficiência na prestação de serviços de natureza social, uma redução do custo unitário do trabalho no conjunto da economia e uma mobilização de poupança para o investimento empresarial. Para tal será necessário construir um consenso político interno em torno de:
  • Transferência para o sector privado e social – em competição - da prestação de serviços de educação e formação (nível primário, secundário, profissional), da prestação de serviços de saúde com a intervenção do Estado recentrada na regulamentação do exercício da actividade nesses sectores, na certificação de prestadores, na defesa dos consumidores e no co -financiamento das famílias, por forma a assegurar o acesso universal a uma “carteira de serviços” com expansão gradual, condicionada ao crescimento da economia;
  • ...

B) Uma Translação do Sector Mercantil hoje “Não Transaccionável” para o Sector Exportador, envolvendo:

  • Criação de um sector de cuidados de saúde competindo no mercado europeu e apoiando-se na instalação de clínicas e hospitais de renome internacional;
  • ...
C) Uma mudança de Dinâmica no Sector Mercantil “Não Transaccionável”
  • ...
  • Aumento da competição na oferta de serviços infra estruturais - gás natural, electricidade, telecomunicações, transportes ferroviários - incentivando a inovação organizativa e nos “modelos de negócio” que permitam menores custos com soluções menos intensivas em capital;
  • Reformulação da composição accionista das grandes empresas do sector infra-estrutural, abrindo-a a parcerias com grandes operadores europeus não ibéricos e a Estados com Fundos Soberanos (Noruega, Qatar, Emiratos Árabes Unidos e Singapura), realizando esta reformulação antes que a crise da dívida soberana e as crescentes dificuldades de financiamento do sector bancário desencadeie a venda “ao desbarato” das posições accionistas portuguesas;
  • ...


D) Um forte crescimento do Sector Exportador por duas vias:

  1. Uma via privilegiando o Volume, que supõe a atracção de empresas multinacionais, nomeadamente dos países mais inovadores do “Norte” (Japão, EUA, Canadá e Escandinávia); esta linha de acção deveria traduzir-se numa mudança do papel dos Pólos de Competitividade, fazendo com que três deles sejam definidos para funcionarem como plataformas de atracção de investimento internacional;
  2. Outra via privilegiando a Variedade assente nas PME e apostando nas start-up tecnológicas, reforçando o papel do capital de risco, desde que na sua gestão estejam envolvidos especialistas internacionais do sector.[Nota: Félix considera que as condições de atracção de Investimento Directo Estrangeiro em actividades transaccionáveis são sensivelmente as mesmas que para as start-up tecnológicas; se não houver para aquele, também não há para estas].
Infelizmente, já após esta recomendação, a "venda ao desbarato" começou, e tudo se tornou mais difícil...

quinta-feira, julho 19, 2012

I&D para a COMPETITIVIDADE. Parte VI - A Encruzilhada

1. Resistência às reformas e esperança de que o tempo volte para trás

Na anterior parte V desta série de posts de reflexão sobre o papel da I&D na competitividade nacional, explanei o meu entendimento de que Portugal perdeu competitividade nos últimos mais de 17 anos, mas que foi possível disfarçá-lo com crédito externo barato, até à ocorrência da presente crise financeira. A continuação deste disfarce só será possível se esta crise for passageira, e for viável regressar ao "antigamente", ou seja, à continuação da política seguida.
Esta, por sua vez, no domínio económico caracterizou-se pela caução estatal, e mesmo encorajamento, a uma economia centrada no investimento privado em sectores abrigados da concorrência, que se tornou consumidora de elevadíssimos recursos nacionais - sobretudo em capital. O próprio Estado também manteve e incrementou um défice constante, acumulando uma dívida pública elevada, embora não creia que esse seja o factor fundamental da crise soberana: esse défice é antigo (embora Maastricht o limitasse a 3%...), outros Estados europeus têm dívidas similares e até superiores, e nem por isso tiveram (ainda) de pedir assistência. É na economia que está o busílis, nomeadamente na dívida externa total.

Entretanto, a assistência financeira internacional condicionou a disponibilidade de fundos (a juros elevados) a uma política orçamental equilibrada, e recomendou também a redução das "excessivas" rendas obtidas pelos sectores protegidos, como modo de libertar rendimento e capital, mas a esta recomendação têm sido feitos ouvidos de mercador, mostrando a força dos laços criados entre os decisores económicos e os decisores políticos instalados no modo de vida estabelecido.
Como disse, a continuidade desta via só é possível se houver forma de voltar ao crédito externo barato sem grandes mossas porque, se tal não acontecer, descapitalizado como está o país, será inevitável um afundamento da economia como raramente Portugal viveu na sua História. Vou, pois, tentar caracterizar as duas vias que se perfilam na actual Encruzilhada nacional.

É curial começar por notar que não é só Portugal que se vê obrigado ao recurso à assistência financeira internacional, na Europa. Ao nosso país juntaram-se os seus dois velhos companheiros de status, a Grécia e a Espanha (esta em menor grau mas essencialmente com os mesmos problemas estruturais), bem como a Irlanda e, provavelmente em breve, a Itália. Dadas algumas dificuldades que a própria França sofre, não é possível deixar de notar a manifestação de uma clivagem na União Europeia: em crise, estão os países mediterrânicos, de tradição católica ou ortodoxa, e em prosperidade estão os países germânicos, de tradição protestante.
A via em que apostam quase todos os políticos nacionais activos é a benévola, em companhia dos restantes países assistidos. A diferença entre a esquerda e a direita nesta matéria é que a primeira reclama que se tome uma atitude negociadora contundente, recorrendo se necessário à chantagem do não pagamento, enquanto a segunda pensa que uma atitude de aceitação de tudo o que for exigido pelos credores, senão mesmo de aparente identificação, é a melhor táctica. A estratégia, no entanto, parece a mesma: que tudo volte ao "antigamente".
Com nuances: a direita acredita que é preciso ceder nos salários e prestações sociais para que os credores voltem a conceder os velhos e bons créditos - mas não tanto que o rendimento disponível caia a ponto de se tornar impossível manter toda a enorme corte aninhada em Fundações, Institutos e empresas autárquicas subsídio-dependentes, nem satisfazer os encargos de dívida dos privados de que o Estado se assumiu fiador, ou seja, não tanto que se torne impossível manter os empregos de cortesãos nem sustentar as rendas financeiras de PPP e renováveis (incluindo nestas os CMEC e Garantias de Potência...).
Nesta perspectiva, a estratégia parece ser apenas de ganhar tempo até que a "crise psicológica" dos mercados financeiros passe e se possa voltar ao rumo anterior. E pode ser que funcione.
Pode também, no entanto, acontecer que o rumo que as coisas tomem seja outro, e que Portugal nunca mais volte a ter crédito barato - no mínimo por uma década. Caso em que, dadas a falta de competitividade e a descapitalização da nossa economia, o nosso nível de vida poderá cair para o da Polónia, senão mesmo o da Bulgária, como adiante mostrarei, e que nos poderá reconduzir ao lugar que ocupávamos há um século, tornando muito difícil qualquer política de I&D. Talvez as rendas "excessivas" e os empregos dos boys se consigam manter, mas os rendimentos do trabalho e pensionistas terão de cair para menos de metade, talvez mesmo um terço dos valores de 2009, e é duvidoso que faça sequer sentido haver I&D em tal país...!

2. O dilema germânico

A chave da Encruzilhada reside na atitude que a Germânia tomar.
Alguns crentes na via benévola pensam que as dificuldades resultam da relutância de uma Senhora que preside a um dos muitos Estados da União, por acaso o maior, e que por isso as coisas quase se resumem a fazê-la mudar de humor. Outros têm consciência de que a coisa é mais séria e sabem, por exemplo, que os media alemães são tão anti-países devedores que a opinião favorável à sua ajuda se tornou tabu na Alemanha, que o próprio "pacto fiscal" que Portugal se apressou a assinar e que foi já também aprovado no Bundestag foi questionado perante o Tribunal Constitucional alemão e que este aceitou avaliá-lo (lá para Setembro...), e que sem o seu aval o Presidente da República alemão não o promulgará.
Confiam, porém, que no fim imperará a "racionalidade", e que sendo do próprio interesse alemão a manutenção dos mercados dos países do Sul e não perderem o que já lhes emprestaram, acabarão por aceitar a emissão de moeda que libertará o tão desejado crédito. Partindo do princípio, também, que a Alemanha subscreve o ideal europeu com que foi criada a Comunidade...

Pode ser que esta visão se cumpra - o que desejo sinceramente, como provavelmente todos os meus compatriotas. Neste sentido, merece nota um interessante editorial de um jornal polaco que defendia mesmo, há semanas, estarmos perante o fim da "Europa alemã", e não do seu início, porquanto os dois "mitos" em que se basearia tal ideia (?), de que estaríamos a viver o início de uma "Europa alemã", se não verificariam. E que mitos seriam esses? O de que "a Alemanha – o maior beneficiário da moeda única e a maior economia da Europa – renunciou à solidariedade com o resto do continente e virou-lhe as costas", e o de que " apesar da crise – a Alemanha está hoje tão bem que perdeu o interesse na Europa e procura parceiros em países como a China ou o Brasil".
Infelizmente, sou de opinião de que os dois referido mitos têm boas razões de ser e que, na verdade, o contrário é que são mitos.
A primeira razão é económica. A segunda é mais política.

2.1 A suposta necessidade alemã dos mercados dos países devedores

A enorme escala da economia alemã, ou a pequenez da nossa, se se quiser, merece ser quantificada com alguns números.
Em 2011, em que o nosso PIB foi de 171 bis € (doravante usarei o jargão "bis" para designar milhares de milhões, ou biliões na notação americano-brasileira), só as exportações alemãs foram de... 1060 bis €! E tinham crescido, relativamente ao ano anterior de 2010... 11,4%!
Simultaneamente, as importações alemãs em 2011 foram de 902 bis €.
Ora este crescimento está a ser feito para fora da União Europeia, "movimento para fora" que ilustro na figura seguinte:

De facto, a União Europeia a 27 toda só absorve 59% das exportações alemãs e a Eurozona apenas 41%, tendo caído de 43% ainda um ano antes. Esta redução foi mais que compensada pelo crescimento das exportações para a Ásia, em particular a China, que cresceram de 12 para 16%!
No entanto, a Eurozona não está em crise.
O que está em crise é o conjunto de países mediterrânicos latinos e católicos/ortodoxos!
Ora, quanto vale Portugal nas exportações alemãs? 0,66%!
E Portugal mais a Grécia? 1,14%!
E Portugal, a Grécia e a Irlanda? 1,55%!
E Portugal, a Grécia, a Irlanda e Espanha? 4,85%!
E Portugal, Grécia, Irlanda, Espanha e Itália juntos? 10,75%!...
Ou seja: mesmo que todos estes cinco países ficassem repentinamente incapazes de importar o que quer que fosse da Alemanha, bastava a esta o aumento de um ano de exportações, como o que teve em 2011, para compensar essa perda! Com a diferença que esses não pagam com o próprio crédito alemão, como nós...

Dos cinco países em grandes dificuldades, a Itália, que absorve 5,9% das exportações da Alemanha e lhe fornece 5,3% das importações, que tem 5,4 vezes a nossa população e é ainda a 8ª economia mundial, é o mais recente foco de preocupações e parece demasiado grande e sólida, mas a verdade é que só em 2011 as suas exportações para a Alemanha caíram 3,8 bis €, devido à concorrência dos países de Leste, e que o seu PIB tem estado tão estagnado como o nosso desde há uma década! A perda de competitividade da produção italiana perante a concorrência coreana, que se veio somar à japonesa, permite conjecturar que esse país seria o que menos sofreria com uma saída do euro, devido ao impulso à competitividade da sua produção - que existe! - que uma desvalorização cambial acarretaria.

No entanto, esta crise restringe-se aos países latinos do Sul. A pobre Roménia, por exemplo, recebe mais 1,8 bis € de exportações alemãs que Portugal, a Eslováquia + 3,4 bis €, a Hungria mais do dobro, a Chéquia mais de 4 vezes, e a Polónia mais de 6 vezes que nós!...
A Áustria, com os seus 8,4 milhões de habitantes, recebe quase tantas exportações alemãs como a Itália, que tem 57 milhões...
Se considerarmos o comércio inverso, a dependência alemã de importações estrangeiras, a situação ainda é pior!
A Roménia exporta para a Alemanha quase o dobro do que nós exportamos (4,7 bis €), e todos os outros muito mais! A Chéquia, por exemplo, e que tem excedentes no comércio com a Alemanha, exporta para lá 40,6 bis €, quase 9 vezes mais que nós, e a Grécia não chega a exportar 2 bis € para a Alemanha, menos de metade da nossa quota!...
Na verdade, enquanto dentro da União Europeia a 27, o sub-conjunto dos países devedores + Itália compra 18% das exportações alemãs, os países que aderiram mais recentemente e que referi compram 32% dessas exportações; e se restringirmos a observação à Eurozona, constataremos que os cinco mediterrânicos absorvem aí 1/4 das exportações alemãs, mas que os países da órbita alemã absorvem o dobro!
Pode-se falar de outro aspecto: a exposição da Banca Alemã às dívidas dos países devedores do Sul. Mas, quanto a isso, apenas direi que os alemães colocam assim o dilema: perder de repente 500 bis €, ou bombar para o Sul 50 bis € todos os anos.
Considero que é aqui que entra a política pura: como avaliará a Alemanha o referido dilema?
Tal depende estritamente da confiança que ela tenha sobre a capacidade dos povos do Sul se "endireitarem", e isso é do domínio da geopolítica e das identidades nacionais.

2.1 A Germânia é muito mais que a Alemanha

Mesmo dentro dos Estados nacionais, é frequente que uma região mais rica, com traços de identidade própria, pense que "sustenta" o resto do país e procure a maior autonomia possível. É em Espanha o caso dos Bascos e sobretudo da Catalunha, em Itália o caso da Lombardia, e até em Portugal esse sentimento existe em boa parte das "forças vivas" do grande Porto, sentimento que não tem maior expressão por que as suas classes baixas e médias-baixas não são mais ricas que as do Sul...
Basta extrapolar destes exemplos para entender o sentimento que os povos germânicos têm para com os devedores do Sul.

Por outro lado, se nos interessássemos um pouco pela História da Europa, continente que nos é historicamente desconhecido excepto de quando por ele andámos integrados nos exércitos espanhóis, saberíamos que os povos germânicos vão da Croácia à Lituânia, onde agora está parte de um antigo coração da Germânia, a Prússia.
A Germânia tem uma identidade que se desvinculou da latinização que nos caracteriza quando exterminou as três legiões romanas que a tentaram conquistar, em 9 D.C.
Depois disso manteve-se estruturada em numerosos feudos, até à primeira unificação, ou 1º Reich, o Sacro Império Romano da Nação Germânica, desde a Idade Média até à sua dissolução por Napoleão.
No entanto, foi com Bismark que surgiu a moderna Alemanha, ou 2º Reich, embora na altura a competição entre a Prússia e a dinastia dos Habsburgos tenha deixado de fora da unificação os povos do Império Austro-Húngaro. Povos que, porém, foram integrados já no século XX por breve trecho, quando do Anschluss nazi (3º Reich), e no qual os austríacos sancionaram com uma votação de 99% a pertença ao Reich germânico (a Áustria viria a fornecer mais SS per capita que a própria Alemanha...).

Com a derrota alemã na II Guerra Mundial, a Germânia foi desmembrada pelos vencedores. A Prússia foi simplesmente abolida, e o seu território repartido entre a Rússia, a Lituânia e a Polónia. Parte da Alemanha (Silésia, Pomerânia) foi integrada na Polónia (que em contrapartida teve de ceder territórios seus à Rússia...), a Morávia foi integrada na Chéquia, e parte da própria Alemanha ficou permanentemente sob ocupação soviética e constituiu um Estado independente.
Ora o muro de Berlim caiu em 1989. E, em 1990, deu-se a reunificação das duas Alemanhas.
Mas a unificação dos povos do antigo Reich continuou, agora através da União Europeia:
A Áustria aderiu à União em 1995;
A Chéquia, a Eslováquia, a Hungria, a Polónia e a Lituânia aderiram em 2004;
A Croácia acaba de ter a sua adesão definida para 2013.
Além destes países com grande composição germânica, outros que lhe tiveram grandes ligações históricas também vieram a aderir à União, como a Finlândia (em 1995), que deve a sua independência à ajuda de contingentes alemães na sua curta guerra civil anti-bolchevique (para já não mencionar a sua aliança com a Alemanha nazi na guerra da continuação), ou a Roménia (em 2007), que também fez parte do eixo durante a II Guerra.
Finalmente, é de mencionar que a própria Holanda, tendo embora uma tradição liberal, como os países escandinavos, partilha de muitas afinidades culturais (e económicas) com a Alemanha, tal como a região flamenga da Bélgica, o que não será estranho ao volume dos contingentes de voluntários que forneceram às SS durante a II Guerra Mundial.
Ora, como é sabido, todos estes países apoiam a atitude alemã contra os países devedores do Sul.
Não é, portanto, plausível o fim do euro, e muito menos ainda o da União Europeia, visto ser esta o que permite a reunificação dos povos germânicos sob a mesma bandeira, o mesmo hino, a mesma moeda, e o mesmo nome: União Europeia, precisamente!
O que já é plausível, e aliás se manifesta perante os nossos olhos, é que o conjunto destes povos não esteja disposto a sacrificar-se para sustentar os latinos do Sul, mesmo que isso implique forçá-los a sairem da União!
Tanto mais que, como mostrei no sub-capítulo anterior, a esta clivagem identitária já corresponde uma clivagem comercial e de entrosamentos financeiros...

Sendo assim, penso poder-se admitir como certo que a "hipótese benévola" de a União vir a emitir eurobonds ou qualque outro meio de emissão de moeda que permita a Portugal e outros viverem a crédito, não ocorrerá.
Naturalmente que nem a Alemanha, nem nenhum dos outros Estados pan-germânicos, desejam perder o que já cá têm emprestado, e por isso é provável que não criem nenhuma situação de rutura - tanto mais que a Alemanha não tem praticamente budget militar, que a França e o Reino Unido mantêm forças nucleares e que, portanto, a hipótese de guerra está completamente fora dos cenários de futuro.
Mas emprestarem dinheiro em quantidade e sem restrições, isso não o farão. Nunca mais haverá crédito barato para Portugal, se esta prospecção estiver certa, como penso estar.

E isso coloca-nos a necessidade de pensarmos no nosso futuro próprio, de nação com 870 anos, e na estratégia que pretendemos adoptar. Do que falarei em próximo post.

terça-feira, julho 17, 2012

I&D para a COMPETITIVIDADE: parte V: O Contexto Económico

Discutir as opções da política de Investigação & Desenvolvimento na perspectiva da competitividade nacional sem ponderar o quadro geral em que tal política se move é, neste momento de crise nacional, correr o risco de repensar a mobília da casa quando o prédio já começou a ruir...
Assim, embora neste blog sempre tenha evitado falar de política genérica, não vejo alternativa a tentar avaliar as grandes opções a que a política nacional de I&D está subordinada, sob pena dessa reflexão sobre I&D carecer de consciência da realidade. Neste post proponho uma reflexão sobre o contexto económico nacional em que a I&D se enquadra, procurando situá-lo historicamente. Não seguindo provavelmente os cânones a que os economistas estão habituados, esta é a reflexão de um engenheiro.

1.  Do caminho até aqui

Para que tenhamos os pés na terra, será bom recordar que Portugal vem de um grande atraso relativo, como o seguinte gráfico ilustra. Os valores mostrados são dos do PIB (nominal) per capita em termos relativos ao dos EUA, e foram retirados de fontes idóneas disponíveis na net.

Como se vê, há um século (1913), em termos comparativos aos dos países que escolhi, Portugal estava no fim da escala, apenas então próximo da Grécia.
De 1913 a 1950 ocorreram duas guerras mundiais (1914-1918, 1939-1945) e guerras civis na Finlândia (1918), Espanha (1936-1939) e Grécia (1946-1949).
As guerras mundiais destruíram sobretudo a Alemanha (que em 1913 tinha uma liderança destacada), mas também muito dos países seus vizinhos, e as civis a Espanha e a Grécia, razões principais da queda relativa de todos esses países relativamente a Portugal, até 1950. A Suécia, que não participou em nenhuma das guerras europeias, destacou-se, e a Finlândia, apesar da guerra que travou com a União Soviética (guerra de Inverno seguida da da continuação), não sofreu nem grandes destruições nem catastróficas perdas humanas, devido à sabedoria com que soube limitar esses conflitos.
O período de 1950 a 1973, entretanto, testemunhou um desenvolvimento geral similar em todos os países ilustrados (em termos relativos), sendo particularmente notável a recuperação alemã em contraponto à relativa estagnação dos países sob ocupação soviética (Chéquia e Polónia) que, nesse quarto de século, foram ultrapassados por Portugal (e pela Grécia e Espanha).
Qualquer destes 3 países do Sul se caracterizava, nessa época, por ditaduras conservadoras com forte dirigismo da economia pelo Estado, protecção dos mercados nacionais e baixos salários. Foi também neste quarto de século que Portugal lançou Planos de Fomento da sua economia, iniciando a exportação de têxteis e calçado, pasta de papel, montagens electrónicas e polpa de tomate para os mercados britânico e nórdicos (EFTA), a descoberta do Algarve pelos turistas ingleses e as remessas de emigrantes. Tecnologicamente, porém, a própria natureza das exportações atesta o seu baixo conteúdo tecnológico, embora tenha sido nesta época que a criação do LNEC alicerçou as bases da engenharia civil portuguesa, única tecnologia em que Portugal adquiriu competitividade internacional.

O caminho percorrido depois da queda do "Estado Novo" é ilustrado na figura seguinte (os 3 países assinalados são os que recorreram agora à assistência financeira internacional).
Até 2000 é patente que Portugal e Espanha diminuíram o seu atraso relativamente aos países mais desenvolvidos, afastando-se também dos países de Leste. A Alemanha, que teve de suportar os custos da integração da Alemanha de Leste após 1990, também acusou o esforço dessa integração na década de 1990-2000.
Apesar do aumento do atraso relativamente a Espanha, resultante das convulsões revolucionárias a que o país vizinho foi poupado em 1974-1976 (particularmente a perda dos protegidos mercados coloniais e o acolhimento de meio milhão de refugiados), Portugal beneficiou neste período da adesão ao Mercado Comum Europeu em 1986 e da decorrente expansão das exportações (especialmente para Espanha, beneficiando dos baixos custos de proximidade e basicamente com os mesmos produtos vendidos no mercado interno), de baixos preços internacionais do petróleo, da chegada dos fundos europeus e de um forte investimento directo estrangeiro de que a Auto-Europa foi paradigmática - embora se o investimento alemão preferiu em regra sectores transaccionáveis, já o espanhol privilegiou os serviços financeiros e o imobiliário.
Porém, a intensidade tecnológica da nossa economia e em particular das exportações não se alterou significativamente, embora os anos 80 e 90 tenham assistido ao nascimento de uma I&D orientada para a economia e em particular para as Tecnologias de Informação (TIC).
Entretanto, a última década (2000-2011) foi, ao longo de todo o último século, o único período em que o processo de desenvolvimento relativo de Portugal se inverteu, em termos relativos.
As razões desta inflexão estão identificadas por variados economistas e atestam uma trágica insensibilidade dos decisores políticos perante os novos desafios que surgiam ao país.
Com efeito, ao longo da década de 90 assistiu-se à concretização de duas ameaças contra as quais quase nada foi antecipado: a abertura dos Mercados Europeu e mundial aos produtos asiáticos, por um lado, e a concorrência pelo Investimento Estrangeiro produtivo (essencialmente o alemão) dos países de Leste após a desocupação soviética, nas indústrias de automóveis e seus componentes, e outras de similar intensidade tecnológica. Félix Ribeiro, um economista com visão geoestratégica, sublinhou-o (fig. seguinte):

Enquanto a concorrência asiática (Paquistão, Bangla Desh, Vietnam...) nos substituía nos mercados de destino das exportações do tradicional sector dos têxteis e vestuário, a concorrência dos países de Leste veio praticamente esgotar o produtivo investimento alemão em Portugal, em benefício sobretudo da Chéquia.
Sendo os sectores de maior intensidade tecnológica os que mais têm crescido no comércio mundial (aeronáutica e aeroespacial, equipamento informático e de tele-comunicações, radio e tv, produtos farmaceuticos e equipamentos médicos), contendo também mais valor acrescentado, a estrutura produtiva portuguesa deixou-se ficar predominantemente pelos sectores mais pobres em qualificações humanas, onde não tem hipóteses de competir com a mão-de-obra asiática e magrebina (vd. Fig. seguinte).

2. Estrutura da (falta de) competitividade nacional

Os portugueses sabem que a adesão ao Euro foi saudada como a ligação irreversível a um fundo de crédito barato e ilimitado, e que daí decorre a explicação de quase todas as opções que foram feitas a partir dos últimos anos da década de 90.
Ora neste período, além do desvio do Investimento Estrangeiro produtivo para Leste, verificaram-se enormes investimentos Portugueses no Brasil e mais tarde também a Leste e para Angola, no conjunto redundando numa acentuada redução de capital disponível. Este, ainda por cima, concentrou-se em sectores protegidos da concorrência internacional, nas infraestruturas, imobiliário, energias renováveis e redes, com a imbricação da Banca com grandes empresas desses sectores. Esta protecção da concorrência internacional foi reforçada por estreitas ligações à "classe política", que concedeu a esses sectores a protecção estatal de rendas elevadíssimas, enquanto um crédito externo fácil fundado na solidez das economias germânicas e na miopia dos decisores políticos alimentou uma euforia consumista que distraiu os portugueses do buraco que se estava a cavar.
A perda de competitividade da economia nacional é bem reflectida no volume e composição das actuais exportações de bens. Em países de pequena dimensão como Portugal, a escala necessária a uma especialização bem sucedida de bens transaccionáveis (exportáveis) requer um grande peso destes no conjunto do PIB, enquanto em países de grande dimensão e mercado tal já não se tem de verificar, em termos relativos. O quadro seguinte mostra o baixo volume das exportações nacionais face ao nosso (pequeno) PIB, e que se pode comparar com o de outros países de semelhante população e até maior PIB.

Neste quadro é também notável a elevada exportabilidade da Alemanha (que tem 7,7 vezes a nossa população e um PIB/capita quase duplo do nosso), assim como a assustadora pequenez das nossas exportações quando comparadas com, por exemplo, as da Áustria (8,4 milhões de habitantes mas 1,8 vezes o nosso PIB), e particularmente da Chéquia (população quase igual à nossa e 90% do nosso PIB/capita)!

Por outro lado, a decomposição das nossas exportações de mercadorias atesta que os têxteis e vestuários já só constituem 5% da carteira, enquanto o sector do calçado, muito enaltecido pela sua capacidade de modernização, não ultrapassa 1% do total. Como é evidente, as nossas mais tradicionais exportações já foram liquidadas!

A observação dos últimos dados, aliás, revela o crescente peso que têm nas exportações a gasolina e outros produtos refinados, e que provavelmente também explica parte do acréscimo de importações de petróleo bruto (que é refinado e depois parcialmente reexportado, nomeadamente para Angola). Os metais comuns (essencialmente arame e barras de ferro e aço) têm aumentado de peso, assim como as máquinas e aparelhos, de que entretanto cerca de metade são "partes, peças e acessórios", mas boa parte dos produtos alimentares exportados são cerveja para Angola, enquanto muitos dos automóveis e seus componentes cá montados se destinam à China (e desses componentes a maioria é de moderada intensidade tecnológica e facilmente deslocável para leste, como as cablagens). No conjunto, portanto, estas exportações descrevem um país que exporta essencialmente baixa tecnologia, segundo as classificações da OCDE...

No entanto, é de notar que os produtos manufacturados não constituem a totalidade das exportações. Pelo contrário, constituindo já cerca de 1/3 da totalidade das exportações, os serviços incorporam muito mais valor acrescentado (VA) que os bens manufacturados (com excepção das indústrias mineiras), cerca de 4/5 do VA total exportado!
Porém, a decomposição da nossa carteira de exportação de serviços denota o peso dominante das viagens e turismo (com o dobro da média mundial), e dos transportes (2/3 dos quais aéreos, um pouco abaixo da média mundial), aliás de modo similar a Espanha. Os "outros serviços" cresceram na sua quota de exportações, seguindo uma tendência mundial que muito deve à Internet, mas as TIC ainda mal atingem 4,2% do total, após crescerem de 2,6% uma década antes, demonstrando a fraca capacidade transaccionável das respectivas empresas (a maioria das "tecnológicas" nasceu depois de 95).
Muito recentemente, aliás, o fundador e Presidente da NOVABASE reconhecia a fraqueza competitiva das nossas "tecnológicas", não só nos mercados externos como também face às grandes encomendas nacionais, nomeadamente dos serviços públicos. Com o fecho da Quimonda, a produção das TIC representa agora menos de 0,9% do PIB nacional...

A questão do peso das TIC na exportação de serviços é relevante quando se cita o "exemplo irlandês". Com efeito, a exportação de Serviços tem sido a chave do sucesso irlandês, como se ilustra no gráfico seguinte (do princípio da década passada), e que mostra o peso dessa exportação relativamente ao PIB de diversos países.

Na Irlanda, os Serviços respondem por 2/3 do total das exportações, uma proporção praticamente inversa da portuguesa! Ora a decomposição dos serviços exportados pela Irlanda (27% do seu PIB, contra 8% em Portugal, à época do gráfico ilustrado), revela que 35% se devia à produção de software e TIC em geral, contra os 2,6% portugueses da época! Os Seguros e os Serviços Financeiros também têm excepcionais componentes, embora isso se deva provavelmente mais ao atractivo regime fiscal irlandês para o investimento estrangeiro que propriamente à sofisticação tecnológica irlandesa.
Porém, a Microsoft, a Google e a Intel têm efectivamente fortes bases neste país, que se pode considerar um país de programadores para multinacionais americanas (a mesma língua também ajuda).
Aliás, e de modo a arrefecer esperanças irrealistas nas nossas TIC, apresento no seguimento um gráfico construído a partir de dados do FMI sobre a exportação de serviços nas TIC para alguns países, ajustado em valor/capita e para 2011. Por razões de escala, não incluí nem o Luxemburgo nem a Irlanda, que exportam, respectivamente, 59 e 91 vezes (!!!) o nosso valor em serviços de TIC, per capita!...

Ora, sabido como é que a Irlanda obtém bons resultados nos testes internacionais de Matemática, e que a capacidade em Matemática é o húmus da capacidade de programação informática, é evidente que o sucesso irlandês não é replicável por Portugal! Pelo menos até que as Reformas de Nuno Crato frutifiquem...

Em suma, a natureza das exportações nacionais, tanto manufacturadas como de Serviços, explica em boa parte a respectiva falta de volume e competitividade. A intensidade tecnológica é quase toda baixa, ou média-baixa, num padrão típico de país subdesenvolvido - pese embora a propaganda política que tem tentado esconder o Sol.

3. A crise financeira e o choque com a realidade

A adesão ao euro coincidiu com o termo das remessas dos emigrantes, e também da poupança privada. Desde a queda do "Estado Novo" que o défice do Estado sempre foi crónico em Portugal (a castanho no gráfico seguinte), mas a poupança privada (famílias e empresas - a verde no gráfico), que era tradicionalmente elevada, começou a decair em 1993, quando a preparação para o euro reduziu substancialmente as taxas de juro, acabando por se tornar negativa em 2006. No conjunto, a poupança nacional é negativa, ou seja, o país vive de endividamento, desde 2004.

Esta "poupança negativa", ou endividamento, foi com o que se fizeram os enormes investimentos em desnecessárias obras públicas (das rotundas em estradas desertas do interior às SCUT, passando pela quase totalidade dos "projectos" nas ruinosas energias renováveis, incluindo a célebre fábrica de montagem dos aerogeradores E-82 da Enercon). Os "privados" endividaram-se na Banca ou "lá fora", a Banca também, e isso foi sendo possível enquanto o Estado pôde servir de fiador.
Simultâneamente, as famílias endividaram-se numa primeira fase para a aquisição de casa própria, e numa segunda fase para o consumo corrente - da compra dos automóveis à dos electrodomésticos, e depois até para luxos outrora inimagináveis: até 2007, as praias do Brasil pejaram-se de veraneantes portugueses!...
O próprio Estado, por sua vez, embora assumindo-se em regra como fiador do investimento privado (a garantia dada pelo Estado ao défice tarifário na electricidade, assim como às Parcerias Público-Privadas, é paradigmático), manteve um fraco investimento, como a figura seguinte ilustra (a roxo, em baixo, o Investimento Público; a verde a receita fiscal, a azul a receita total do Estado e a encarnado a despesa total).

Foi a crise financeira internacional de 2007 que levantou uma barreira neste caminho de vida fácil.
Numa primeira fase, o Governo português sentiu-se encorajado a aumentar ainda mais a despesa pública e o patrocínio ao investimento privado improdutivo com caução pública, não compreendendo o que estava a acontecer, até que numa segunda fase a escassez de crédito mundial que resultou da crise levou a Finança mundial à consciência do alto risco de incumprimento do pagamento das dívidas por Portugal, e acabaram-se as taxas de juro baratas. O Governo teve que pedir assistência internacional.
Com o Estado ele próprio incapaz de honrar as dívidas assumidas, a sua credibilidade de fiador dos investimentos privados improdutivos esfumou-se, e toda a economia, e em particular a Banca, descobriu que também para ela terminara o acesso ao crédito externo barato com que se financiara, defrontando-se com enormes dívidas para as quais reclama do Estado protecção, pelo menos na forma de caução política...
Com o crédito externo cortado, toda a construção civil, de obras públicas e no imobiliário, parou, assim como o generoso crédito ao consumo. E, se a construção civil tem um elevado valor de indução de empregos indirectos - das madeiras às tintas, das mobílias aos vidros, dos electrodomésticos aos produtos decorativos - também a tem de desemprego indirecto, quando pára. A isso soma-se a redução do rendimento disponível para consumo pela elevação em 2011 da carga fiscal, e assim chegámos ao desemprego em massa, que por sua vez agrava as despesas do Estado e lhe reduz as receitas fiscais.
Esta é a situação existente neste momento.
Neste contexto, é já evidente que os interesses construídos na imbricação da Banca com os investidores improdutivos e uma classe política de baixa qualificação pretendem nada sacrificar das rendas conseguidas, inviabilizando, portanto, a reestruturação da nossa economia. Esta posição só será viável se for possível regressar ao "antigamente", isto é, ao crédito externo barato e ilimitado de que Portugal se habituou a viver, o que por sua vez assenta na esperança de que a actual crise financeira internacional seja passageira.
Porém, a progressão futura da crise nacional em muito dependerá do contexto internacional, e por isso penso que este merece uma reflexão prospectiva, o que farei em próximo post.