sexta-feira, junho 11, 2010

A relação entre os preços da electricidade, o mercado e as fontes renováveis.


O Manifesto para uma Nova Política Energética veio chamar a atenção para o sobrecusto das fontes intermitentes de energia renovável na produção da energia eléctrica, invocando dados publicados pela própria Entidade Reguladora da Energia, a ERSE.
Desde então multiplicaram-se as "explicações" que procuram, com desfaçatez, mistificar tudo ao ponto de defenderem que são as próprias renováveis que fazem baixar os preços da energia, ao baixarem os do respectivo mercado ibérico!
A argumentação começou com o ataque de Vasconcelos ao Manifesto, ainda este nem fora publicado, intoxicou-se com os escritos de Miguel Barreto e Álvaro Martins e passou a ser martelada repetidamente nos media, como há um mês pela mão de Lurdes Ferreira do Público e há dias pelo ex-director do "i" num telejornal da SIC. É o grande consenso "verde" ao serviço objectivo (e em alguns casos subjectivo) do que realmente importa, os interesses instalados na subsídio-dependência energética.
É oportuno, portanto, explicar claramente como se formam os preços da electricidade, e que relação existe de facto entre as fontes renováveis e os "preços do mercado".

Como funciona, então, o comércio da electricidade?

Em primeiro lugar, os denominados "Produtores em Regime Especial" (PRE), que incluem os eólicos, a cogeração e outras produções térmicas como as de biomassa, lixo ("Resíduos Sólidos Urbanos") e biogás, as mini-hídricas e o solar, entregam tudo o que conseguem produzir às redes - à da EDP Distribuição mas também à da REN em mais de metade da energia eólica - a um preço fixo definido por Decreto-Lei: à volta de 11.5 ç/kWh em média para as térmicas (das quais as que queimam lixo são as que recebem menos), 9.5 ç/KWh para as eólicas, cerca de 8.5 ç/kWh para a mini-hídricas, 34 ç/kWh para as solares, e muito mais para a "microprodução".  Quer a quantidade de energia entregue, quer os preços facturados, não dependem da procura que haja nem, portanto, têm alguma coisa a ver com a ideia de "mercado"!
Esta energia produzida pelos PRE varia entre 1/9 e mais do que a totalidade da procura, conforme a época do ano e as horas do dia mas, em média, satisfaz presentemente à volta de 30% do consumo nacional.

Depois de encaixar obrigatoriamente a energia dos PRE, o sistema satisfaz então a procura que falta com as ofertas de produção existentes, por ordem crescente dos preços pedidos. Se toda a procura já estiver satisfeita pela energia dos PRE, o valor que a procura atribui à energia que falta é, obviamente, zero, visto não ser precisa mais nenhuma! Zero que, obviamente, não é o que custou essa energia dos PRE com que se terá satisfeito toda a procura, nem é o que vai ser pago pelos consumidores por ela, mas é apenas o valor que a procura atribui à energia que falta depois de absorvida a dos PRE!...
Em geral, porém, ainda sobra procura, sobretudo no Verão e nas horas de ponta de consumo, pelo que é preciso recorrer aos "Produtores em Regime Ordinário" (os que não são PRE), e a prioridade vai para os que pedem preços menores.
Porém, nada neste "mercado" de electricidade é o que parece, como passo a explicar.

Até 2003 os preços pagos aos produtores ordinários eram calculados em função dos seus custos de produção, e não pela concorrência de mercado. Esses custos incluíam a amortização dos investimentos, os custos de Operação e Manutenção que garantiam a disponibilidade das centrais mesmo que não estivessem a produzir, custos de combustível se fosse caso disso (nas termoeléctricas), e "prémios de risco" (lucros). Esses custos definiam um preço que era combinado nos denominados "Contratos de Aquisição de Energia" (CAE), firmados entre as centrais e a REN, que é responsável pela gestão técnica da rede eléctrica.
Com a preparação para a adesão ao Mercado Ibérico de Electricidade (MIBEL), em 2007, os CAE foram extintos e supostamente entrou-se numa lógica concorrencial, promotora da eficiência e da inovação. Supostamente!...
Mas, primeiro os espanhóis, e depois nós, substituímos os CAE pelos "Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual" (CMEC), que constituem uma fórmula que garantiu que ficava tudo praticamente na mesma para as centrais já existentes, mas com uma habilidade contabilística: essas centrais vendem aparentemente ao preço de mercado, que pode ser muito inferior aos custos de produção, mas a diferença é-lhes depois devolvida! Essa remuneração dos seus custos reais de produção não é, assim, contabilizada como custo de energia, mas é disfarçada numa rubrica contabilistíca denominada "Custos de Interesse Económico Geral" (CIEG)...
Devo dizer que a ideia dos CMEC me não parece má. Porque se de repente mudássemos a fórmula que os construtores dessas centrais tinham considerado para a retribuição do seu investimento, tendo em conta os seus elevados tempos de execução e os enormes capitais envolvidos, estaríamos a garantir a ruína das nossas infra-estruturas nacionais - sobretudo tendo em conta que foram os nossos concorrentes espanhóis quem primeiro teve essa ideia! Aliás, a partir do momento em que lógica concorrencial passou a reinar na produção de electricidade, as incertezas quanto ao futuro levaram a que só houvesse dois tipos de investimentos que interessam: os de remuneração garantida por Decreto-lei, como os dos PRE, e daí a viragem que a EDP realizou para esse sector, ela que tanto torcera o nariz ao fim do monopólio que permitiu o advento das mini-hídricas e da cogeração nos anos 80, e as centrais a gás natural de ciclo combinado que, como já em tempos expliquei, têm um custo de investimento relativo muito baixo e, por isso, remunerações desse investimento pouco sensíveis aos preços de venda conseguidos.
Bem, e que centrais das existentes estão protegidas por CMEC ou, até, ainda por CAE que foram permitidos remanescer? Das que já havia em 2007, quase TODAS! Na verdade, em regime liberalizado existem apenas as novas de ciclo combinado a gás natural do Carregado e Lares (EDP), 8 velhas e amortizadas hidroeléctricas de pequena potência, e a do Alqueva (que também é de baixa potência, apesar de grande albufeira)!
Com algum peso, portanto, só as duas a gás são relevantes, e a elas voltarei.
E a quanto montam as "compensações" pela diferença entre os preços de venda no mercado e os reais custos de produção dessa larga maioria de centrais, disfarçados nos tais CAE e CMEC? Para se saber o seu montante global, basta consultar os relatórios da ERSE!
Um exercício de análise desses relatórios foi feito pela jornalista "verde" Lurdes Ferreira de O Público, em Maio passado, mas a sua intenção era demonstrar que as termoeléctricas também recebiam subsídios, de modo a absolver a subsidiação das renováveis, e nada esclareceu.
O que os referidos relatórios mostram é que a ERSE contabilizou em 223,4 M€ as compensações dos CAE e CMEC a atribuir a todas as centrais por eles protegidas em 2009, e em 553 M€ o valor previsto para 2010. Essas compensações são-no relativamente ao preço médio de mercado verificado em 2009 (4.3 ç/kWh) ou esperado em 2010 (5.0 ç/kWh), mas como no fim do ano é preciso ver que preços efectivamente ocorreram, há sempre uma "compensação" que transita para o ano seguinte.
As renováveis, entretanto, requereram uma "compensação" de 95,8 M€ em 2009 e um valor previsto de 805,1 M€ para 2010, a entregar às empresas que tiveram de pagar a respectiva energia aos preços definidos por Decreto-Lei acima indicados e depois a tiveram de revender ao preço de mercado. No caso dos PRE a contabilidade complica-se porque este diferencial, que já ocorrera em anos anteriores, fora até 2010 remetido para o défice tarifário, isto é, o Governo autorizara que a sua compensação não fosse reflectida nas tarifas dos consumidores mas que também não tivesse de ser suportada pelas empresas que a tiveram de aceitar, concretamente a EDP Distribuição e a REN; e agora decidiu começar a pagar essa compensação a estas empresas, mas "em prestações", embora com juros.
Além destes mecanismos contabilísticos dos CAE e dos CMEC, existe ainda uma outra fórmula compensatória, o "diferencial de correcção de hidraulicidade" (CH), que garante que as hidroeléctricas recebem sempre mais ou menos o mesmo: se chover pouco, recebem mais para compensar, e se chover muito (como este ano), recebem menos.

Voltemos então ao "mercado" de electricidade: se quase todos os produtores recebem, afinal, um preço regulado pelo que produzem, qual é o papel dessa figura de "mercado" que obriga a tanta ginástica contabilística para que a maioria de produtores seja de facto imune à concorrência?
Para o perceber, basta ver quem é que de facto sobra e se tem de sujeitar aos preços de mercado: as novas centrais a gás natural da EDP e... o comércio luso-espanhol! Mais nada!
Ora este comércio transfronteiriço é ainda limitado por mecanismos que protegem as nossas centrais dos preços espanhóis, mais baixos que os nossos em média 0,33 ç/kWh, devido à parcela nuclear da sua produção, que em Espanha custa 3/4 do preço médio da hidroeléctrica e 4/5 da a gás natural, como relatórios internos da EDP reconhecem (a figura acima é retirada de um desses relatórios da EDP).
Por tabela são também prejudicadas as novas centrais a gás natural da EDP, já que nos últimos meses, quando havia muita água nos rios e albufeiras, as velhas hidroeléctricas da EDP podiam vender a preços despreocupados porque os CMEC se encarregarão de as "compensar" por isso.
Trata-se, porém e principalmente, do reflexo da queda de consumo resultante da crise económica.
Agora que chegou o Verão e as nossas albufeiras começam a estar vazias, o preço de mercado da energia já tem estado sustentadamente acima dos 4 ç/kWh, o que lá vai pagando os custos de O&M das centrais a gás mas que, garantidamente, não pagam sequer os custos do gás que devem ter comprado por grosso e agora têm que gastar, com ou sem lucro.
É por isso que a EDP e todos os negociantes é nas renováveis que apostam cada vez mais - é que aí é que o preço de venda é mesmo imune ao mercado (já que os CAE e CMEC só há nas antigas)!
E é também por isso que, como a jornalista Lurdes Ferreira notava com aparente surpresa, o preço de mercado da electricidade bem pode descer que isso não tem qualquer reflexo no que os consumidores pagam. É que, de facto, mercado de electricidade é coisa que praticamente não há!
[e a propósito: no recente debate organizado pelo Núcleo de Estudantes de Engenharia do Ambiente do Técnico, alguém desvalorizou o custo de 4.1 ç/kWh que eu ali indicara para a energia nuclear francesa como sendo "propaganda da EDF". Ora devo esclarecer que o custo que a EDF indica é de 4.4 ç/kWh, e que é o regulador francês, a ERSE lá do sítio, quem diz que a EDF exagera com vista a aumentar a tarifa e que o custo real é o que eu indiquei!...]

6 comentários:

Anónimo disse...

Finalmente já percebi porque é que nem a GALP nem a Iberdrola constroem as centrais de ciclo combinado que lhes foram atribuídas em concurso.

Se o fizerem vão ter prejuízos tal como a EDP deve estar a ter com a central de Lares e a do Carregado (nova).

Anónimo disse...

"Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura". Continue por favor.

tempus fugit à pressa disse...

bom compreendo o seu ponto, mas todas as soluções futuras terão incógnitas tanto em custos dos equipamentos de geração instalados, como das estruturas logísticas associadas
a solução estaria mais na eficiência dos consumos, penalizando consumos per capita elevados,aumentando a co-geração energética nos centros industriais e não no aumento desmesurado das estruturas de produção

Pinto de Sá disse...

tst: pelo que diz, parece que tudo é imprevisível e que não vale então a pena fazer planeamento.
Há muita gente que pensa assim. Por isso é que estamos na cauda da Europa...
Quanto a "penalizar" consumos... já reflectiu quão facilmente nos ocorrem soluções coercivas... sobre os outros?

Anónimo disse...

A ler:

Industria recorta las energías renovables y mantiene la nuclear

El Gobierno, a través del Idae (Instituto para la Diversificación y Ahorro de Energía) ha elaborado un nuevo Plan de Energías Renovables hasta el año 2020 que reduce sustancialmente las previsiones de nuevos proyectos verdes que realizó el Ejecutivo hace apenas tres meses. En marzo el Gobierno presentó un paquete de medidas para salir de la crisis.

http://www.expansion.com/2010/06/14/empresas/energia/1276550415.html?a=6e5ebdbc75fb65bb185e063a373c5294&t=1276594553

secameca disse...

Não penso que uma lógica simples de mercado funcione para a actual rede eléctrica.

Se fossem introduzidas regras de mercado à força com a actual infraestrutura o que iria acontecer a médio prazo era desinvestimento e falhas eléctricas generalizadas.

Para permitir um mercado, a rede eléctrica devia ter excesso de capacidade, ser tolerante a falhas, tal como a Internet. Para permitir o uso de fontes de energia intermitentes o armazenamento de energia também devia ser incentivado.

Não penso que seja possível ignorar as fontes de energia intermitentes. De outro modo não conseguimos resolver o nosso problema. As centrais nucleares produzem energia barata, mas custam capital e demoram anos a construir. Um par de meses e coloca-se um moinho de vento em pé. É rápido e fácil escalar o uso da energia eólica. O problema é a rede. Não foi desenhada para energias intermitentes.

O nuclear é complicado. Quando o tempo de concessão e construção de uma central é maior que a duração de um mandato político para governo, à sempre o risco de o próximo governo cancelar o projecto.