1.2
I&D TECNOLÓGICA DISRUPTIVA
Em Portugal, seguindo
algumas correntes estrangeiras mal digeridas e à margem da realidade económica,
tem havido nos últimos anos uma hipervalorização da I&D disruptiva, ainda
por cima quase sempre associada à ideia de que ela requer a criação de novas empresas:
“Inovação” e “Empreendedorismo” passaram a ser palavras geminadas.
Ora, como tem sido
notado por diversos autores[i], esta hipervalorização
assenta na ideia de que as práticas científicas e industriais são “um fluxo linear em que as ideias emergem
primeiro na investigação fundamental e depois atravessam sucessivamente as
fases de desenvolvimento, demonstração e comercialização – sendo cada etapa
subsequente caracterizada por uma prioridade crescente da implementação sobre
a inovação. Por outras palavras, o potencial inato para a disrupção é
atribuído à investigação fundamental inicial – o resto será apenas execução.”
Como também está bem identificado, esta visão resultou historicamente do
divórcio entre os investigadores e a actividade produtiva, em
laboratórios de Universidades, do Estado e mesmo de algumas empresas.
A realidade,
porém, é que a parcela média de despesa em I&D disruptiva feita por empresas
que fazem I&D em países como os EUA é de apenas 10%, e mesmo em empresas
de alta tecnologia (mas já estabelecidas) esse valor anda pelos 15% (70-20-10% são os
valores médios gerais de despesa em I&D respectivamente incremental
nuclear, incremental complementar e disruptiva, sendo particularmente típica
dos sectores industriais). Embora os proveitos provenientes dessas despesas
sigam a proporção inversa da dos recursos investidos, a razão por que, sendo
tão gratificante o retorno da I&D disruptiva, esta não
absorve mais recursos nas empresas estabelecidas, é o facto de entre 90 a 99%
das tentativas de lançamento de novos negócios baseados em tal I&D falharem.
Este elevado risco que acompanha o alto retorno da R&D disruptiva deve ser um
considerando essencial na definição de políticas equilibradas de I&D.
a) Inovação e empreendedorismo, e capital de risco
Os exemplos de
sucesso de start-ups tecnológicas
baseiam-se na rara combinação de três capacidades: a “adivinha” do que é
desejável para o consumidor (ou mais formalmente, a identificação das
tendências sociais que guiam as mudanças de negócio), o conhecimento do que
é ou vai ser oferecido ao consumidor pelos players estabelecidos (as tendências de mercado), e o conhecimento
das possibilidades da tecnologia (e portanto do seu preciso estado de
desenvolvimento).
O conhecimento
das possibilidades da tecnologia é o que uma sólida formação escolar
pós-graduada em princípio fornece, nomeadamente os doutoramentos e em
particular se eles contiverem componentes curriculares que alarguem horizontes
facilitando a fecundação cruzada de conhecimentos[ii]. Dificilmente uma
licenciatura de 5 anos rebaptizada de mestrado e onde níveis elevados de
exigência são desencorajados pode fornecer tal formação.
Por outro lado, o
conhecimento das ofertas possíveis no mercado pelos players existentes, e a “adivinhação” dos desejos desse mercado,
dificilmente podem ser obtidos fora do universo empresarial e muito menos em
laboratórios destituídos de espírito comercial!
Por estas
considerações, pensamos que o modelo de fomento da “Inovação e Empreendedorismo”
que vem sendo praticado há mais de uma década, baseado em “cursos” desses
temas e na promoção de parcerias entre Universidades portuguesas e
norte-americanas (por exemplo, MIT-Portugal), não aborda as necessidades reais
de criação da cultura de inovação pretendida. Pelo contrário, pensamos que
contribuirão muito melhor para a composição dessa cultura:
·
O
reforço do grau de exigência e profundidade do ensino pós-graduado. É duvidoso
que o modelo de Bolonha possa garantir generalizadamente tal formação, o que recomenda
o retorno ao apoio de doutoramentos integralmente realizados nos EUA para os
jovens mais promissores[iii];
·
O
encorajamento de formações pós-doutorais através do trabalho em empresas High-Tech nacionais ou estrangeiras, e
não em Universidades, de modo a que a formação escolar seja complementada pela
experiência de I&D visando a criação de riqueza[iv].
Tendo a ideia de
que é bom associar “Inovação” (disruptiva) à criação de novas empresas
conduzido à criação de “ninhos de empresas”, “incubadoras” e capital de risco, vale a pena notar que a simples preferência pela juventude não
garante um maior gosto pelo risco (com sentido de responsabilidade) da
inovação, sendo de sublinhar que:
·
O
famoso espírito do “Sillicon Valley” que inspirou a criação de parques
tecnológicos por todo o mundo e também cá, não é replicável em Portugal. Tem
raízes culturais no espírito pioneiro dos garimpeiros do ouro californiano e
liga-se a um culto de risco que atravessa todos os aspectos da vida dos seus
“militantes”, associada à tradição anglo-saxónica de saída de casa aos 18 anos
e de que os “campus” universitários são uma clara expressão[v].
·
O
capital de risco do “Sillicon Valley” é gerido por gente que partilha a mesma
cultura de risco da comunidade tecnológica das empresas do vale, e que a
conhece bem. Mas, como é evidente, os verdadeiros empreendedores do Vale
procuram minimizar o recurso a capital alheio, trabalhando frequentemente em
condições duríssimas de prazos e parcimónia, o que requer uma atitude oposta à
do facilitismo!
A taxa de
fracasso das start-ups tecnológicas é superior a 90%, pelo que o elevado retorno
das que têm sucesso só é gerível com risco moderado em universos de grandes
números, o que dificilmente se poderá verificar num país com a dimensão de
Portugal a menos que ele seja gerido como um todo, nesta matéria. Por outro lado,
mesmo quando bem-sucedidas, as Start-Ups
são frequentemente financeiramente frágeis, vindo a defrontar-se com o dilema
de recusarem crescer para que os fundadores não percam o respectivo controlo,
o que as impede de se tornarem relevantes (entre inúmeros exemplos nacionais
desta típica opção, cite-se a Fatrónica, sediada no TagusPark e criada pelo
antigo Director de I&D da CENTREL), ou de aceitarem participações de
capitais alheios ou mesmo a venda, o que muitas vezes depois as “mata” (a título
de funesto exemplo, recorde-se a ChipIdea).
É finalmente de
notar que quando uma nova tecnologia disruptiva se estabelece universalmente,
a sua expansão comercial e maturação tecnológica relacionam-se numa conhecida
função “em S”, em que na fase de crescimento do “S” a expansão comercial é
rápida e fácil mesmo sem grande competitividade tecnológica. Porém,
invariavelmente após a fase de expansão rápida ocorre a “zona de saturação do
S”, em que a competição se encarniça e só as empresas verdadeiramente
competitivas subsistem. A História das empresas de tecnologias informáticas é
cheia de exemplos de tais casos, atestando uma característica das empresas de
I&D disruptiva que cavalgam grandes ondas mundiais: a volatilidade
tecnológica.
b) I&D disruptiva em empresas estabelecidas e Spin-offs
Conduzindo as
considerações anteriores à óbvia conclusão de que a I&D tecnológica
disruptiva tem muito melhores condições de adesão à realidade comercial e de
sustentabilidade financeira se produzida em empresas já existentes, de
preferência sólidas, é também um facto que tal I&D suscita, nessas
empresas, dificuldades de gestão, diferentes das da I&D incremental.
Além de requerer
um tipo de investigadores diferentes dos da I&D incremental, mais instruídos científico-tecnologicamente
e mais visionários comercialmente (têm de trabalhar sobre o que será o
futuro, e não sobre o presente já existente, ainda que fora da empresa, como na
I&D incremental), pelo seu próprio carácter de aposta radical tendem a suscitar
anti-corpos nas estruturas já existentes nas empresas, o que por sua vez requer
também uma gestão excepcionalmente habilitada e apoio ao mais alto nível.
Algumas grandes
multinacionais da indústria mostram como a integração da I&D disruptiva e
da exploração dos seus resultados é melhor conseguida autonomizando a gestão
das novas áreas de negócio abertas pela I&D disruptiva. A criação de spin-offs vinculadas às empresas-mãe mas
com cultura própria é frequentemente a solução ideal, o que infelizmente entre
nós raramente é bem tolerado pelas estruturas empresariais pré-existentes nem
compreendido pelos seus gestores[vi].
Inversamente, uma
forma de aquisição de tecnologia avançada e de capacidade de I&D disruptiva
bem-sucedida comercialmente por parte de empresas estabelecidas é a compra de
empresas tecnológicas, sobretudo na fase intermédia do desenvolvimento destas,
quando já demonstraram o valor comercial das suas realizações mas lhes falta a
capacidade financeira para a consolidação de estruturas de produção e/ou
vendas. A integração e controlo dessas empresas adquiridas, porém, é uma arte
difícil que raramente tem sido bem praticada entre nós, levando frequentemente
à destruição de equipas de I&D e, com isso, à das próprias aquisições.
Essencial para o sucesso de tais aquisições é a capacidade de enquadramento a
contento mútuo dos “ases” que geralmente dinamizam as referidas equipas de
I&D[vii].
Em todo o caso, a
origem empresarial de spin-offs tecnológicas confere muito maior
probabilidade de sucesso e sobretudo de rentabilidade que a origem universitária![viii]
1.3 PROPRIEDADE INTELECTUAL,
PROJECTOS DE I&D COOPERATIVOS EUROPEUS E NORMAS TÉCNICAS
a) Propriedade Intelectual: patentes e segredo
Uma das métricas
de avaliação da inovação empresarial de um país é a contabilização do número de
patentes registadas pelo mesmo. Portugal é particularmente deficiente nessa
métrica, conforme se ilustra graficamente na figura seguinte, que mostra a
evolução aproximada na última década do número de patentes registadas, per capita, em alguns países da
União Europeia (a linha superior, a azul, é a média geral per capita da Europa de 502 milhões de
habitantes, e que é igual a 22 vezes
a portuguesa, per capita)[ix].
O gráfico mostra também que a taxa de patentes concedidas à Grécia
se confunde com a nossa, ambas estagnadas desde há uma década, que a de
Espanha é cerca de 3,5 vezes a portuguesa
(per capita!), e que em contraste com
estas as da Chéquia e da Polónia mostram um progresso sustentado, tendo a
checa ultrapassado a portuguesa e a grega em 2006 e aproximando-se rapidamente
da espanhola, enquanto a polaca está já a meio caminho da nossa e da grega,
tendo acelerado também a partir de 2006.
O gráfico não
mostra, por razões de escala, as taxas dos países campeões e que ultrapassam
largamente a média da EU-502: a Alemanha, a Suécia, a Dinamarca e a Finlândia,
todos com taxas similares e de cerca de 60
vezes a nossa (per capita!),
seguidos de perto pela Holanda. O país com maior taxa de patentes per capita, porém, é o Luxemburgo, com
quase o dobro dos seguintes, atestando que o registo de patentes tem mais a ver
com competição comercial (de produtos tecnológicos) do que propriamente com a
produção da tecnologia em si.
O Governo
português da década anterior, consciente da fraqueza nacional nestas estatísticas,
procurou melhorá-las, produzindo e aprimorando o Código da Propriedade Industrial
(CPI) e criando diversos incentivos ao registo de patentes, nomeadamente na carreira
docente universitária. Foi até grandemente reforçado o “Instituto Nacional da Propriedade Industrial”, com um pesado staff, mas o gráfico que apresentamos
demonstra que estas iniciativas não tiveram qualquer resultado, apesar de ter
crescido grandemente o número de pedidos
de patente (mas não o de concessões): enquanto a relação média de concessões
por pedidos é de cerca de 50% na União, em 2003 e 2008, por exemplo, Portugal
submeteu respectivamente 65 e 144 pedidos[x], mas só lhe foram concedidos
30 e 26, respectivamente; o número de pedidos cresceu dramaticamente, mas o de
concessões, nada! Verdade se diga que taxas de rejeição semelhantes
se verificam em todos os países mais atrasados, incluindo a Grécia e a
Chéquia e pior ainda a Polónia, mas para o Luxemburgo a taxa de concessões é
da ordem de 90%!
Acontece que dos
65 e 144 pedidos de patentes feitos por Portugal em 2003 e 2008, apenas
respectivamente 10 e 16 o foram em produtos de alta tecnologia, e que essa tendência é geral; com efeito, o
próprio EPO reconhece essa baixa percentagem de patentes de alta tecnologia, o
que justifica assim: “The considerable
reduction in high-technology patent applications filed with the EPO may
reflect the length of patent procedures. Given the increasing speed of
technological change and the rapid pace at which imitators are able to bring
new technologies to market, it may be that enterprises increasingly choose to
invest in continued innovation alongside patent protection.” A experiência pessoal confirma esta escolha também pelas nossas
empresas-estrelas.[xi]
O registo de
patentes, com efeito, não mede a inovação tecnológica de um país: o que mede é
a agressividade competitiva internacional das suas empresas comercializadoras de produtos com
tecnologia proprietária!
Acresce ao esclarecido anteriormente que as estatísticas
internacionais mostram que, por exemplo na I&D em genética, 97% das patentes nunca chegam a ser
comercializadas, e que em geral 10% apenas da totalidade das patentes geram 85%
de todos os proveitos. Na realidade, como nota um estudo recente, “... not all firms doing R&D
patent their innovations. In
fact, fewer than 50% of firms engaged in R&D file patents in any given
year. Moreover, even among patenting firms, few of them patent all their
innovations. It’s often more effective
to protect intellectual property by keeping it a trade secret.”[xii]
O segredo
tecnológico tem outras vantagens cruciais sobre as patentes como garantia
de protecção da propriedade intelectual: é de aplicação expedita, rápida e
barata, e sobretudo pode cobrir os resultados da I&D incremental, aquela
que sendo ou não patenteável incorpora o precioso know-how resultante dos 90% de investimento em I&D que
efectivamente as empresas fazem[xiii]!
Infelizmente, o nosso CPI e o INPI, que tanto detalhe e
meios dedicam ao registo de patentes (sem resultados), tem apenas um artigo
mal construído (318º) dedicado à “protecção
de informações não divulgadas”, e prevê como pena para a respectiva
violação uma multa irrisória (art.º 331º), em discrepância
relativamente à Lei 109/91 (actualizada pela 109/2009) que protege a
propriedade intelectual do software,
e que prevê uma (ligeira) pena de prisão para a violação dos respectivos segredos!
Numa altura (2011) em que foi criado um Tribunal específico para a Protecção da
Propriedade Intelectual, é patente o divórcio entre a realidade económica e as
concepções estatais de Propriedade Intelectual!
Rever a legislação da Propriedade Intelectual de modo a
dar ao segredo tecnológico a
primazia que ele merece como protecção do know-how
para a competitividade económica, prevendo nomeadamente a extensão e precisão
do seu âmbito e um substancial agravamento das penas previstas na legislação, é
a medida que se afigura mais útil. Simples, útil, e bem mais barata que o
registo de patentes... Tanto mais que o registo de patentes tem uma fraca
correlação com os proveitos das empresas que os gerem, e fraquíssima
probabilidade de se traduzirem em rendimentos para instituições não empresariais
quando são estas a registá-las, pela incapacidade de tais instituições
monitorizarem a sua violação nos mercados internacionais e sustentarem os correspondentes litígios.
Com efeito, só empresas sólidas têm o domínio de mercado
internacional e as estruturas jurídicas, técnicas e financeiras necessárias à litigação
defensiva das patentes, o que raramente se aplicará a empresas portuguesas. O
gráfico anterior ilustra-o. Para as pequenas empresas tecnológicas de países
atrasados como o nosso, o conteúdo tecnológico das Inovação ganhará mais a
estudar patentes alheias do que a registar patentes próprias! E, passe o cinismo, também ganhará mais a espiar os segredos tecnológicos de empresas estrangeiras do que a registar patentes para embelezamento estatístico (é o que fazem esses estrangeiros, como toda a gente sabe)...
b) Projectos de I&D europeus
Desde o final dos anos 80, quando da adesão à União
Europeia, que Portugal tem participado nos programas comunitários de I&D,
dotados de consideráveis meios financeiros (os programas-quadro têm tido
orçamentos anuais da ordem dos 5 Bis-€).
Esses programas têm entretanto evidenciado as seguintes características:
·
Do
ponto de vista da União, praticamente nenhuma
tradução em aumento da competitividade de qualquer das suas economias, seja
pela criação de novos produtos, seja pela aquisição de competências
tecnológicas; as razões identificadas são: a) as áreas de projecto são
definidas politicamente pela comissão, e não pela “adivinhação” dos desejos do
mercado; b) 2/3 dos participantes não têm orientação comercial (Universidades e
Institutos); c) Para 1/3 dos participantes, estudos mostram que as verbas
obtidas não cobrem sequer os custos incorridos.
·
Ainda
que não tenham promovido a competitividade económica da Europa, estes programas
têm contribuído para a sua competitividade científica, de que outros beneficiam
economicamente;
·
Para
Portugal, estes programas têm constituído importantes fontes de financiamento
das Universidades, laboratórios de Estado e Institutos, libertando assim o
Orçamento Geral do Estado de tais funções;
·
Porém,
os custos de oportunidade da
participação nacional nestes projectos não está quantificada mas são enormes:
enquanto alocados a estes projectos, os recursos nacionais de I&D das
Universidades, Laboratórios e Institutos não contribuem para a competitividade
nacional, e em particular para a das suas empresas de bens transaccionáveis.
Do exposto,
resulta claro que a menos que não haja utilidade para os recursos nacionais de
I&D empenhados nos programas europeus (não haja custos de oportunidade), os
respectivos projectos são mais perniciosos do que benéficos para a
competitividade nacional. A única forma de a participação nacional em
projectos de I&D europeus ser positiva, pelos financiamentos obtidos, é
ela ser oportunista, isto é, permitir o desenvolvimento de tecnologias e/ou
competências previamente determinadas como necessárias para a estratégia de
empresas nacionais, oportunismo saudável de que há alguns exemplos[xiv].
c) Normas técnicas e Ordem dos Engenheiros
Um eficaz meio de criar proteccionismo a mercados
tecnológicos é a imposição de normas técnicas. A Alemanha, por exemplo, tem
uma longa e frutuosa tradição de criação de normas técnicas nacionais (por
exemplo, as normas DIN), que frequentemente são depois adoptadas
internacionalmente (por exemplo, as normas CEI e CENELEC), até pela boa
fundamentação técnica inicial das normas alemãs. Da poluição automóvel à
respectiva segurança, passando pelas medidas contra as emissões de CO2, a
Alemanha sempre usou a normalização e a exigência de compatibilidade com a
mesma como forma de proteger os mercados em que a sua indústria é
tecnologicamente superior.
Em geral os EUA seguem processo similar com normas quase
sempre diferentes das da Alemanha, a cujos produtos assim criam barreiras,
sendo exemplo elementar o uso da frequência de 60 Hz em vez dos 50 Hz do resto
do mundo.
No espaço europeu, grande parte das normas são
comunitárias, mas mesmo assim muitos países têm comités técnicos nacionais que
produzem versões nacionais das normas europeias, frequentemente
adicionando-lhes alguma coisa que cria protecções específicas aos seus
fabricantes, especialmente em produtos de nova tecnologia em que as normas
internacionais não estão ainda maduras. Portugal, porém, há muito que não tem
qualquer comité técnico activo, limitando-se o Instituto Português de Qualidade
a traduzir ipsis verbi as normas
europeias para português, enquanto os poucos acompanhantes portugueses do que
se faz nos comités europeus se dedicam essencialmente, ao que parece, a
viajarem à conta dessas participações e pouco mais...
Existem em particular normas relativas a aspectos de
segurança (por exemplo, contra acidentes no trabalho) e de qualidade técnica de
novos produtos (por exemplo, normas de ligação à rede pública da geração de
energia renovável) em que Portugal é praticamente omisso, com graves prejuízos
públicos. Promover a participação activa de Portugal na nacionalização das
normas técnicas europeias, também para se saber influenciar a produção destas,
é um requisito tecnológico que deve ser promovido em parceria com empresas e
serviços utilizadores, empresas produtoras e a comunidade tecnológica nacional.
Esta actividade normativa é, em princípio, da
responsabilidade do Estado. Porém, é facto que o Estado se deixou
“descapitalizar” intelectualmente desde a Revolução de 1974/75, e existe outra
solução, muito praticada nos EUA: a de promoverem as ordens
profissionais, mais do que a defesa corporativa de certos sectores mais ou
menos minoritários das profissões que representam, essa
normalização técnica e também a educação permanente da classe.
Em Portugal a Ordem dos Engenheiros poderá desempenhar
esse papel, aceitando deixar de se limitar a ser a organização de defesa
corporativa dos engenheiros civis e alargando o seu âmbito de actuação,
estimulando também a educação da classe com cursos, conferência especializadas
e revistas, à imagem do que se faz nos EUA. Com uma organização e modos de
funcionamento transparentes e abertos, a Ordem poderá assegurar o consenso
técnico para as suas propostas normativas, prestando também e assim um serviço
ao Estado[xv],
ao mesmo tempo que pode dar um contributo à difusão da cultura tecnológica
nacional nas empresas, para o que não há nenhuma outra entidade vocacionada.
NOTAS
[i] Por
exemplo:
http://andrewhargadon.typepad.com/my_weblog/2012/03/the-breakthrough-bias.html
[ii] É
famoso o facto de Steve Jobs, o criador do MacIntosh, dever parte da sua
inspiração para a interface gráfica do mesmo ao facto de ter frequentado uma
disciplina de caligrafia quando
estudante universitário...
[iii] Nos
EUA, os bacharelatos de espectro largo são de 4 anos, a que se seguem os mestrados
especializados de 2 anos. Além de terem mais um ano que o modelo de Bolonha
praticado entre nós, há um notável acréscimo de complexidade nos temas
ensinados, razão por que apenas 1 em 4 bacharéis prossegue para o mestrado nos
EUA, ao contrário do que sucede ente nós com a fórmula dos “mestrados
integrados”. Finalmente, os doutoramentos requerem em regra mais 1 ½ a 2 anos
de formação curricular pós-graduada, antes da preparação da tese. Embora em
anos recentes esta exigência dos doutoramentos americanos tenha vindo a ser
afrouxada, ainda requer tipicamente mais 1 ½ a 2 anos de estudo curricular
avançado que os nossos, continuando a ser unanimemente considerados os melhores
do mundo, enquanto os nossos doutoramentos se podem agora legitimamente considerar
equivalentes apenas aos mestrados americanos.
[iv] Já
há uns 20 anos que tivemos a oportunidade de conviver com diversos doutorados
em Universidades dos EUA, de origem asiática, que depois dos seus
doutoramentos procuravam avidamente experiências de trabalho em empresas
High-Tech, onde juntavam à formação escolar obtida a experiência de a
transformar em riqueza. Manifestando nisto uma clara assimilação da cultura
americana, muitos deles voltaram mais tarde aos países de origem para
replicarem os negócios que tinham aprendido, contrastando com a nossa tradição
de maior academismo e apego ao respectivo status.
[v] Temos
amigos próximos que são típicos do “Sillicon Valley” e com quem visitámos
algumas empresas carismáticas do Vale. O espírito dos quadros das start-ups, que trabalham imenso em
condições duríssimas, é o de que se os seus produtos tiverem sucesso, se os
conseguirem desenvolver no tempo (curto) disponibilizado pelo capital de
risco, então as empresas valorizar-se-ão muitíssimo e eles ficarão ricos –
senão, restar-lhes-á procurar trabalho noutra start-up, quando o capital acabar. É o mesmo espírito que
impregnava os lendários garimpeiros das montanhas próximas no tempo da corrida
ao ouro. Além disso muitos destes quadros praticam desportos radicais e alguns
têm mesmo actividades acessórias como por exemplo pertencerem aos Seals...
[vi]
Exemplos particularmente bem-sucedidos encontram-se na SIEMENS. Pelo contrário,
exemplos mal sucedidos encontram-se em algumas experiências portuguesas.
[vii] Um
notável exemplo de uma aquisição bem feita foi a da empresa canadiana MULTILIN
pela GE. Com o fim da guerra fria e sob a liderança de Welsh, a GE voltou em
força ao mercado dos equipamentos de energia, constatando que em diversos
sectores perdera capacidade tecnológica. Num desses sectores (informatização de
Subestações) tentou desenvolver a tecnologia com uma equipa que possuía em
Espanha, usando fundos europeus, mas quando essa equipa terminou o projecto
abandonou a GE e, com o apoio de utilities
espanholas, criou a ZIF, uma pequena empresa altamente sofisticada sediada em
Bilbao e que tem tido grande sucesso internacional. A GE adquiriu então a
MULTILIN, uma empesa canadiana semelhante à ZIF mas, para não arriscar a
destruição da respectiva equipa de I&D, deu ao respectivo “ás” a direcção
do departamento da GE em que a MULTILIN foi integrada e manteve durante alguns
anos o nome da MULTILIN associado ao daquele Departamento. Só teve que o fazer
durante uns anos, até endogeneizar a I&D da MULTILIN. Em contrapartida,
foram várias as pequenas empresas e equipas tecnológicas adquiridas por uma grande empresa nossa conhecida
nos anos 90 que acabaram desmanteladas com prejuízo significativo para todos,
sem dúvida pela tentativa de se lhes impor uma integração mal-aceite pelas
estruturas já existentes e que lhes não respeitou a visão que os
respectivos “ases” tinham e a autonomia a que estavam habituados...
[viii] Um
recente estudo sobre a totalidade
das empresas high-tech resultantes de
spin-offs ocorridos na Suécia no
período de 1994 a 2001, mostra que a para as empresas cujos fundadores tinham
experiência empresarial além da académica, a taxa de sobrevivência ao fim de 5
anos era de 62% contra 53% das de
origem puramente académica, mas com uma diferença muito maior no volume de vendas,
proveitos e dimensão: o triplo! K. Wennberg et al., “The effectiveness of university knowledge spillovers: Performance
differences between university spinoffs and corporate spinoffs”, Research Policy, 40, 2011.
[ix] Fonte: EPO (European Patent Office).
[x] Vide:
http://epp.eurostat.ec.europa.eu/statistics_explained/index.php?title=File:Patent_applications_to_the_EPO_and_patents_granted_by_the_USPTO,_2000-2008.png&filetimestamp=20111201153523
[xi] Em 1995
criámos um método, durante o desenvolvimento das Protecções Digitais da EFACEC,
que era patenteável. A Administração da empresa, porém, considerou inútil o
registo da referida patente precisamente pela preferência considerada a dar ao
desenvolvimento rápido. Alguns anos depois tínhamos sido copiados, pelos franceses, mas isso não teve importância, porque tudo continuou a evoluir rapidamente. Vale entretanto a pena referir uma recente crónica jornalística que dava conta de dois jovens portugueses que tinham sido admoestados por trabalharem fora de horas em duas empresas, uma alemã e outra americana, por suspeita de espionagem industrial; a crónica visava ilustrar como os portugueses são dedicados trabalhadores e os estrangeiros até nos criticam por isso, mas o que realmente mostrava era a ignorância dos jovens referidos e do próprio cronista quanto à importância do segredo tecnológico e, como corolário, da espionagem industrial...
[xii] Anne Knot, “The thrillon dólar R&D Fix”, Harvard Business Review, May 2012.
[xiii] Existe
uma relação entre o uso do segredo como base da propriedade intelectual e o
explanado atrás a propósito da aquisição de start-ups
e de spin-offs: frequentemente, a
pequena empresa tem o seu valor num know-how
que pode não ser patenteável ou estar patenteado, mas se ele puder ser objecto
de segredo (por exemplo, através de documentos, modos operatórios ou outros),
tornam-se muito mais sólidas as aquisições ou spin-offs baseadas nesse know-how. Esse será o principal interesse da certificação (autêntica) dos processos de trabalho da spin-off ou start-up se acordo com a norma ISO 9001.
[xiv] Há mais
de 20 anos Portugal obteve a participação num projecto europeu com o objectivo
estrito de partilhar o respectivo financiamento, o projecto DIAS (“Distributed Intelligent Actuators and Sensors”).
Os seus principais actores, EDF e Hartman & Braun, tinham no projecto os
seus próprios objectivos oportunistas, não assumidos publicamente, de
desenvolvimento de tecnologias para centrais nucleares e certas industrias
químicas de alto risco, e a participação de Portugal, sendo-lhes imposta
politicamente, era difícil de integrar. Foi assim decidido que a Portugal
competiria um objectivo secundário e menor, o de desenvolver a Interface
Homem-Máquina do sistema, tema sem qualquer interesse científico para os participantes
universitários portugueses. Porém, estes envolveram a EFACEC no projecto, a
qual pretendia então desenvolver tecnologia para os sistemas de SCADA em cujo
negócio decidira vir a ser player
importante. Foi assim possível que o projecto DIAS constituísse um
financiamento interessante para o desenvolvimento pela EFACEC de tecnologias
e competências de Visualização gráfica e Bases de Dados em tempo real que ela
pouco depois começou a comercializar num domínio completamente distinto do do
projecto. O sucesso deste oportunismo exemplar muito deveu ao Prof. Ferreira de
Jesus do IST.
[xv] Nos EUA
abundam estas Ordens, ali denominadas de Associações e de Institutos, como a
dos Engenheiros Electrotécnicos (IEEE) ou a dos Petróleos, por exemplo. As próprias
normas estatais americanas, ou ANSI, são frequentemente adopções nacionais de
normas do IEEE e das outras Associações. Em Portugal, há cerca de 20 anos
houve um movimento com raiz no INESC que tentou imitar o IEEE na Ordem dos
Engenheiros, dinamizando um Colégio de Engenharia Electrotécnica que chegou a
editar uma promissora revista da especialidade contendo artigos divulgando
realizações tecnológicas da indústria nacional e da Universidade com aplicação
industrial. Porém, por razões que desconhecemos, essa iniciativa gorou-se e
não durou mais de um ano...