terça-feira, fevereiro 23, 2010

Posição sobre a política energética nacional: I - Sobrecustos e inviabilidade técnica

Com este post, inicio a publicação de um documento de posição sobre a política energética nacional, em 15 pontos. A publicação desdobrar-se-á em 4 posts, a publicar diariamente a partir de hoje, e cuja versão impressa poderá ser acedida num hyperlink que colocarei no final.

1. Portugal ainda tinha em 2009 preços médios da electricidade, na Europa, mas com subsidiação cruzada das empresas pelas famílias.


Na Europa dos 27 e antes de IVA, segundo as estatísticas da Eurostat, em 2009 a electricidade para consumo doméstico em Portugal teve um custo médio idêntico à média da EU-27, mas 6% superior ao espanhol. No entanto, para os consumidores mais pobres, esse custo foi 50% superior à média europeia e dos maiores!
Para o consumo industrial o preço médio foi 13% inferior ao da média da EU-27  e 22% inferior ao de Espanha, sendo óbvia a subsidiação cruzada (das famílias à indústria) existente em Portugal, como em alguns outros países da Europa Ocidental, mas não em Espanha.
Porém, em 2009 verificou-se o diferimento do pagamento de 447 milhões de € de sobrecusto das energias renováveis que teria, só por si, acrescido em 6% o preço médio do kWh, diferimento que se adicionou a um défice já acumulado de anos anteriores, totalizando 709 milhões de €.


2. Nos últimos anos, Portugal tem praticado uma política de subsidiação à energia eléctrica de origens eólica e solar em que a quantidade de energia produzida por essas formas tem sido mistificada.

No actual estado de desenvolvimento tecnológico, a energia eléctrica de origens eólica e solar não é economicamente viável sem uma forte subsidiação, tendo vindo a ser sistematicamente confundidas para a opinião pública a potência instalada, indicativa dos volumes de investimento realizados, e a energia produzida por essas fontes, cuja inerente intermitência é escamoteada. Assim, embora se tenha atingido uma potência eólica instalada total de 3500 MW no final de 2009, com quase 1900 geradores localizados em perto de 200 parques eólicos, a potência média anual que esses geradores produzem é de apenas 1/4 dessa potência instalada.

Menor ainda é a relação entre a potência média anual efectivamente gerada e a instalada na energia solar fotovoltaica, em que apesar de terem sido montados 84 MW até ao final de 2009, a potência média deles extraível não ultrapassa 1/5 desse valor, e 1/6 no caso dos painéis fixos em edifícios.

No total, e apesar de um investimento estimável em 4100 milhões de € nos último anos, a que se poderão adicionar cerca de 700 milhões de € (20%) de investimentos adicionais requeridos às redes, particularmente à de Transporte da REN, as gerações de energia eólica e solar já instaladas não atingem sequer a produção anual típica de uma única central a carvão como a de Sines, e não satisfazem em média anual mais que 15% do actual consumo nacional de electricidade.

Entretanto e ao longo da década, a produção nacional de energia eléctrica não conseguiu acompanhar um aumento de consumo de cerca de 50% (agora reduzido em perto de 6% pela grave crise económica), passando-se de uma situação de auto-suficiência energética para um saldo importador crónico de cerca de 10% da electricidade consumida.


3. Os sobrecustos da energia resultantes da subsidiação das produções de origem eólica e solar já instaladas têm sido remetidos para um défice tarifário cuja satisfação implicará, nos próximos anos, um substancial agravamento do preço da energia eléctrica.

O preço médio previsto para 2010 de referência para a energia eléctrica no mercado ibérico é de 5 ç/kWh, uma redução de 2 ç/kWh relativamente ao valor assumido para 2009. Porém, o preço médio da energia de origem eólica é presentemente de 9,1 ç/kWh e, com excepção da hidroeléctrica, da cogeração e da provinente das ETAR já instaladas, as outras são ainda mais caras, atingindo 34,5 ç/kWh na solar fotovoltaica e 58,7 ç/kWh na microgeração.
Até recentemente estes sobrecustos foram diferidos, como mencionado em 1., mas o Governo aprovou em 2008 a proposta da ERSE para o seu pagamento até 2024, no valor já referido de 709 milhões de €. Porém, este valor apenas diz respeito ao défice registado até ao final de 2009 e que fora diferido, não incluindo, pois, o sobrecusto dessas energias já instaladas nos anos futuros e que, só em 2010, a ERSE prevê ascenderem a 611 milhões de €.

Ao valor deste sobrecusto directo das renováveis, de que as eólicas constituem cerca de metade e a cogeração 1/5, há que adicionar o sobrecusto associado na rede de Transporte da REN, somando tudo um valor que se pode estimar em mais de 11% do preço médio – a qual aumentou apenas 3% relativamente a 2009, graças à forte queda de preços da energia eléctrica no mercado ibérico e dos combustíveis de referência nos mercados internacionais como o carvão e o gás natural, que, se tivesse sido acompanhada pelas tarifas, teria redundado numa descida significativa de preços. Esta incorporação do sobrecusto das renováveis no preço da electricidade será sentida pelos consumidores quando os custos internacionais dos outros factores regressarem aos valores anteriores à crise.


4. Recentemente foi retomado o aproveitamento dos recursos hidroeléctricos nacionais, com uma mistificação ainda maior quanto à quantidade de energia de origem hídrica por eles produzível.

Estando já em construção ou concessionados para tal 10 novos aproveitamentos hidroeléctricos, e a serem reforçadas as potências de mais 6, num aumento da potência instalada total de cerca de 4650 MW, o investimento associado atinge o valor anunciado de 4850 milhões de €, mas a potência eléctrica de origem hídrica que efectivamente tal investimento produzirá em média será apenas de perto de 175 MW, 1/27 da potência a instalar e só 3% do actual consumo nacional de electricidade.

Na verdade, sendo o nosso país relativamente dotado, em termos médios europeus, de potencial hidroeléctrico, a sua exploração no século passado constituiu por algumas décadas a fonte principal da electricidade consumida no país, mas nessa época o país era pobre e mal electrificado, sendo o consumo de electricidade por habitante em 1980 30% do actual, e em 1970 apenas 1/6.

Devido ao crescimento do consumo propiciado pela democracia, a energia hidroeléctrica já só satisfaz, em média anual, 23% do consumo nacional, apesar deste ainda só atingir 3/4 da média europeia por habitante, não sendo passível de aumentos drásticos. Por isso, apesar de os novos aproveitamentos incrementarem em 1/7.5 a energia nacional de origem hídrica, relativamente ao consumo actual do país isso é apenas 1/7.5 de 23%, 3%. Este valor cobriria o aumento de consumo nacional de apenas um ano com o ritmo de crescimento que ele tinha antes da actual crise económica, não justificando os 4850 milhões de € de investimento envolvidos que, de uma forma ou de outra, terão de ser pagos pelos portugueses.


5. A intermitência da energia eólica cria problemas técnicos a Portugal insolúveis num quadro de exploração racional e que estão a ser desastrosamente tratados

Embora os 3500 MW instalados de produção eólica só produzam realmente, em média anual, 1/4 desse valor, 900 MW, essa produção varia a cada momento em função das condições meteorológicas e de localização, sendo estatisticamente máxima de madrugada e de Inverno, particularmente em Invernos húmidos, e muito fraca em extensas épocas do ano. Por outro lado, a exploração desta forma de energia assim como a de todas as outras renováveis, com exclusão das grandes hidroeléctricas, obedece a um quadro legislativo e a meios técnicos que impedem a sua modulação em função das necessidades do consumo (produção em regime especial, ou PRE, não controlável).

Considerando a totalidade de fontes de energia renovável exploradas em regime especial e existentes presentemente no país, e que incluem importantes componentes energéticas de cogeração e de mini-hídricas, essa produção tanto se pode reduzir a menos de 700 MW (com predomínio da cogeração, biomassa, etc), em muitas alturas do ano, como exceder os 3500 MW em certos períodos (com predomínio eólico). Esta variabilidade é incontrolável, no quadro existente, e requer a existência em reserva permanente de centrais termoeléctricas de controlo rápido, só para fazer face às bruscas, grandes e imprevisíveis quedas de produção da geração eólica!

Por outro lado, o consumo nacional de energia eléctrica tem presentemente o valor médio de 5700 MW, mas oscila entre o mínimo de 3300 MW nas madrugadas de dias de descanso e mais de 8500 MW nas horas de ponta. Infelizmente e como é patente, a produção de energia eólica tende a ser maior nas horas de menor procura, ou seja, de madrugada, assim como em Invernos húmidos com temperaturas amenas e consumos reduzidos de aquecimento. Estas circunstâncias conduziram já, em Dezembro de 2009, à existência de muitas dezenas de horas em que a produção de energia renovável excedeu largamente o consumo nacional e teve de ser entregue a Espanha gratuitamente, por o país vizinho não necessitar dela, embora essa energia tenha sido paga aos respectivos produtores aos preços subsidiados já referidos, com a correspondente perda nacional de vários milhões de €.

Ora este problema técnico de excesso de energia renovável relativamente às necessidades de consumo em certos períodos do ano agravar-se-á severamente no futuro próximo, caso o programa energético do Governo não seja alterado.
Com efeito, está já concessionada a instalação de mais 800 MW de produção eólica (mais 23% que a existente), e o Plano do Governo prevê ainda a concessão de mais 1400 MW, totalizando 5/3 do existente. Neste cenário, embora a totalidade dessas instalações pretenda adicionar à produção nacional uma potência média anual de 540 MW (9.5% do consumo médio actual do país), a incompatibilidade técnica entre a sua disponibilidade e o consumo tornar-se-á impossível de gerir sem medidas que terão sempre um custo extraordinário para o país.

A cumprir-se o plano governamental para a produção eólica, Portugal teria 25% do seu consumo de electricidade satisfeito por essa forma de energia, ultrapassando a Dinamarca, actual campeã mundial com 20%. Porém, a Dinamarca é um pequeno país com ligações eléctricas por cabos submarinos à Suécia e que tem por vizinha a grande Alemanha, que por sua vez tem fortes ligações eléctricas a vários outros países europeus. Por estes motivos, quando a Dinamarca tem excesso de produção eólica não tem grande dificuldade em exportar a sua energia eléctrica.
Portugal, pelo contrário, tem um único vizinho com quem constitui verdadeiramente uma península eléctrica, dada a carência de linhas de transporte de energia na fronteira dos Pirenéus. Nestas condições, Portugal tem de se subordinar às condições de aceitabilidade do seu único país fronteiriço, que ainda por cima tem também uma grande produção de energia eólica fortemente correlacionada meteorologicamente com a nossa.

A solução efectivamente prevista pelos responsáveis portugueses para a gestão técnica deste problema são os aproveitamentos hidroeléctricos referidos em 4., na maioria dos quais se está a instalar capacidade de bombagem, isto é, de uso das suas albufeiras para o armazenamento de água içada de jusante, consumindo energia eléctrica de origem eólica, para a turbinar depois devolvendo a energia em horas convenientes. Na verdade, considerando quer os dados técnicos previstos para esses aproveitamentos, quer as próprias declarações orais e escritas de responsáveis, essa função complementar da produção eólica é, de facto, o objectivo principal dos referidos investimentos.
Ora esta planeada utilização em grande escala de armazenamento hídrico de energia de origem eólica nunca foi testada em país algum, podendo-se prever duas hipóteses de funcionamento:

a) Na melhor hipótese, o plano funciona, mas o processo de bombagem para posterior turbinagem da água tem um rendimento energético da ordem de 75 a 80%, que se pode fixar em 75% considerando as perdas nas redes entre as eólicas e as hidroeléctricas (2-3%). Umas contas simples mostram que para a quantidade de energia de origem eólica para que se prevê armazenamento, os aproveitamentos consumirão em média anual 700 MW de produção eólica, para devolverem apenas cerca de 525 MW. Ou seja, as perdas energéticas nestas barragens igualarão os 175 MW de origem hídrica que elas poderão produzir, sendo que o saldo energético real gerado pelos 4850 milhões de € investidos será na verdade nulo, ou até negativo se a energia consumida em bombagem ultrapassar os 700 MW;

b) Na hipótese mais provável e tal como as ocorrência de Dezembro passado ilustram, as situações prolongadas de vento forte invernal coincidirão com chuva abundante que competirá com a bombagem pela capacidade das albufeiras, e estas não terão, frequentemente, capacidade disponível para o armazenamento da energia de origem eólica. Nestas condições, e tal como já aconteceu em Dezembro passado na barragem do Alqueva, os aproveitamentos hidroeléctricos poderão usar a sua capacidade de bombagem para dar consumo à excedentária produção eólica, mas terão que abrir simultaneamente as comportas para vazar a água em excesso, sem a turbinar. Ou seja, os planeados aproveitamentos hidroeléctricos funcionarão como dissipadores de energia de origem eólica! O absurdo deste provável cenário não carece de mais comentários.

1 comentário:

Anónimo disse...

A este primeiro ponto, eu chamava "A anatomia de um assalto monumental".

FC