sábado, novembro 13, 2010

SmartGrids: fantasia e realidade. Parte I: a visão europeia.

Desde o Verão passado que tem vindo a tomar forma uma iniciativa político-académica nacional visando a participação num projecto europeu que dispõe de algumas centenas de milhões de € comunitários para distribuir, o que pôs imediatamente em campo aqueles a quem pouco importa se os projectos de I&D têm alguma utilidade para a Humanidade e menos ainda para Portugal.
Nestes casos, as atitudes dividem-se entre os que nem questionam a racionalidade dos projectos, desinteressados de pensar pela sua cabeça e eivados da crença de que tudo o que vem da "Europa" é luz, os cínicos que acham que isso pouco importa e que o que interessa é o dinheiro e, finalmente, os que, brincando com Lénine, pensam que "deve-se trabalhar obrigatoriamente onde estejam as massas", subtraindo-as "aos oportunistas", para se fazer com elas o trabalho realmente necessário. Massas no sentido de $massas$... :-))
Neste contexto, proponho-me reflectir convosco sobre a natureza do "movimento" pelas SmartGrids que desde 2008 e o início da recessão no Ocidente desenvolvido ganhou grande projecção internacional e também nacional, e que é o objectivo do muito dinheiro de que vos estou a falar.
As visões do que será uma smartgrid estão eivadas de ideologia, e por isso a própria definição do que são varia com quem a define. Em Portugal tem-se estabelecido a visão ideológica ecotópica, emergente da Alemanha "green" e merecendo por isso o eco pronto do nosso stablishment e dos interesses pró-eólicos associados, tendo no entanto por advogados alguns académicos que sabem, ou têm a obrigação de saber, a dimensão dos enganos em curso - como a aliança INESC-Norte / Ministério da Ciência e Tecnologia.
Para clarificar então as coisas, nada melhor que começar por citar (traduzindo-o), um paper holandês publicado em 2009 e que continua a ser um dos 10 mais consultados no MUNDO electrotécnico, que ousa o título de "Smart Grids: o futuro ou fantasia?":
"SmartGrids é um denominador comum para uma ampla gama de desenvolvimentos que tornam as redes de energia de média e baixa tensão mais inteligentes e flexíveis do que são hoje em dia. A motivação principal para as iniciativas de SmartGrids é que tais desenvolvimentos melhorariam a fiabilidade do fornecimento e/ou apoiariam a tendência para fontes de energia mais sustentáveis. Presentemente, as redes de média e baixa tensão não podem ser observadas nem controladas remotamente.
Diversas empresas estão a desenvolver tecnologias visando a criação de redes inteligentes. No entanto, estes desenvolvimentos tendem a radicar-se em possibilidades tecnológicas, em vez de numa sã análise dos problemas e numa abordagem estruturada para a sua solução.
No passado recente, uma grande variedade de sensores, protocolos, equipamentos de comunicação e similares tem sido concebida para apoiar a transição para as SmartGrids. No entanto, muitos deles não têm encontrado grande aplicação, o que pode ser atribuído, pelo menos parcialmente, ao facto de que não havia problemas para os quais fornecessem uma solução, pelo que não lhes foi possível elaborar um "business case" positivo. Em suma, houve demasiada pressão da tecnologia e solicitação a menos do mercado.
O facto de alguns dos fabricantes destas tecnologias sem sucesso até culparem os operadores das redes eléctricas de conservadorismo, em vez de melhorarem a relação qualidade / preço dos seus produtos, dificulta ainda mais um verdadeiro arranque das Smart Grids."
O paper, no seguimento, tenta propor uma abordagem mais útil e comercialmente orientada para este "movimento", mas é demasiado evidente que o faz para poder ter sido aceite na Conferência em que foi apresentado, e onde imperava o mesmo "pensamento único" ecotópico que o artigo critica.
Um dos dedos postos na ferida que o paper anterior ilumina (que o "movimento" das SmartGrids tem sido um conjunto de "soluções" à procura de problemas, em vez do contrário), é elucidado por outro paper acabado de apresentar internacionalmente e que é, também ele, um dos 10 mais lidos de momento no mundo electrotécnico. Citando-o:
"Uma rede de energia moderna precisa de se tornar mais inteligente, a fim de proporcionar uma oferta barata, fiável e sustentável de electricidade. Por esses motivos, tem estado a ser realizada uma considerável actividade nos Estados Unidos e na Europa para formular e promover uma visão para o desenvolvimento de futuras redes de energia inteligentes.
No entanto, a maior parte dessas actividades tem enfatizado apenas a rede de distribuição e o consumo, deixando no escuro o quadro maior da rede de transporte no contexto das smartgrids."
E, para finalizar esta introdução, um bom resumo das coisas pode ser encontrado neste outro recente artigo, onde se dá conta que "there are people questioning the need for Smart Grids while others are more than convinced that it is the only way to handle the future" e que reconhece a inexistência de critérios para aferir da bondade dos investimentos feitos nesta tecnologia.
Tem, por tudo isto, interesse descrever agora os roadmaps da Europa, da América e da China nesta matéria das SmartGrids, para se começar por perceber que a visão ecotópica que por cá passa por suposta evidência consensual está, de facto, longe de ser um consenso. De caminho, noto só que, como já escrevi na blogosfera, "ter soluções à procura de problemas" em vez do contrário é precisamente o paradigma dominante da nossa I&D académica, hoje instituída em política oficial.

A visão "europeia" das SmartGrids está panfletada, por exemplo, neste documento de 2005, em que se explicita claramente que os seus objectivos são "aumentar a eficiência, segurança e fiabilidade do sistema europeu da electricidade e do gás e das respectivas redes, por exemplo pela transformação das actuais redes de electricidade em interactivas (clientes / operadores), e pela remoção dos obstáculos técnicos à implantação em larga escala e à integração efectiva de fontes de energia distribuídas e renováveis".
E em que "interacção clientes/operadores" estavam eles a pensar, e em que fontes de energia distribuídas e renováveis? A figura anexa ilustra-o: energia fotovoltaica e micro-turbinas.
Como já mostrei abundantemente neste blog, por exemplo aqui e aqui, nenhuma das tecnologias de microgeração de electricidade, daquelas que poderiam ser produzidas em Baixa Tensão por consumidores dispersos, é economicamente viável - nem o vai ser nas próximas décadas! E quando digo que não é economicamente viável, não me refiro a serem um bocadinho mais caras que as fontes actualmente usadas, mas sim 10 a 20 vezes mais caras! E não há nenhuma evolução tecnológica no horizonte próximo que permita prever uma inversão da situação.
As tecnologias energéticas não evoluem como as informáticas, que vivem uma revolução, e muito menos obedecem à lei de Moore; as tecnologias energéticas evoluem a um ritmo muito mais semelhante à tecnologia dos automóveis!...
O irrealismo económico da ecotopia da microgeração é tão gritante que a "Europa" tem vindo a secundarizá-la, mas apenas para a substituir por outra fantasia, a do automóvel eléctrico (que também tenho comentado abundamente neste blog; só como exemplo, aqui e aqui), e isto apesar das instituições internacionais mais conceituadas em previsões energéticas, incluindo as próprias europeias, não preverem o advento próximo desse automóvel, como dei conta recentemente aqui!
Note-se que não se trata de ser "pró" ou "contra" o carro eléctrico ou o conceito de "produtor-consumidor" em termos de "gostar de", como já uma vez expliquei; trata-se de pensar com espírito científico, e não na base do que se gostaria que fosse, trata-se de opor a Ciência ao wishful thinking, de ter a lucidez de não embarcar na fusão nuclear fria, ainda que a desejássemos!

Ora, já neste ano de 2010 um documento de desenvolvimento estratégico para as SmartGrids reforça a visão que "a Europa" tem defendido desde 2006. A necessidade das Smartgrids é explicitamente justificada assim: "It is vital that Europe’s electricity networks are able to integrate all low carbon generation technologies as well as to encourage the demand side to play an active part in the supply chain. This must be done by upgrading and evolving the networks efficiently and economically. It will involve network development at all voltage levels. For example, substantial offshore and improved onshore transmission infrastructure will be required in the near term to facilitate the  development of wind power across Europe. Distribution networks will need to embrace active network management technologies to efficiently integrate distributed generation (DG), including residential micro generation, on a large scale".
Dada a inexistência presente ou futura de microgeração residencial, trata-se, como tenho vindo a denunciar desde há ano e meio, apenas de adaptar o consumo de energia e as redes de Transporte e Distribuição à intermitência da geração eólica! O quadro idílico da visão da "Europa" que o documento contém sobre um imaginário "produmidor" (produtor-consumidor) e que reproduzo aqui, não passa disso: puro idílio!

O documento enuncia depois os principais desafios que se colocam a esta visão, de momento, e que vão todos no sentido de permitir o encaixe de mais produção eólica: reforço das redes para permitirem o trânsito de energia nas horas de (pouca) produção renovável máxima, instalação de produção eólica offshore em grande escala, integração da geração intermitente, "gestão activa da procura" de todos os consumidores, com ou sem geração própria, aproveitamento das tecnologias de armazenamento (storage) de energia e preparação para o automóvel eléctrico. A única verdadeira evolução nesta visão é a de agora permitir implicitamente que ela se concretize através da anunciada Super-rede, ao mesmo tempo que desaparece qualquer alusão às "micro-redes" tão queridas do Prof. Peças Lopes do INESC-Norte e que têm dominado a nossa estratégia nacional de I&D no assunto...

Mas, de todas as actividades propostas, a que suscita maiores preocupações à "Europa" é a da Gestão da procura, ou seja, a tentativa de forçar os consumidores a adaptarem os seus padrões de consumo á intermitência da produção eólica. O documento reconhece: "The majority of electricity end consumers today have a passive relationship with the electricity supply system. The complexities of the system, and the operation of the electricity markets, deter customers from taking a more active role. A simple example of this is the fact that after nine years of market opening in Europe the overall rate of customers switching supplier is less than 10%." E, para combater esta resistência popular, o documento recomenda que o povo seja "educado", e que lhe sejam explicados os benefícios de gerir o seu próprio consumo, nomeadamente ambientais.
Ora nos EUA, de que falarei na Parte II deste post (assim como da China), o processo de instalação de smart meters (contadores electrónicos de energia, comunicantes), está a suscitar um amplo movimento de resistência popular, como reconhece hoje mesmo um artigp do New York Times. Os consumidores dão-se conta que, depois de instalados os smart meters, quase sempre as facturas sobem, e por vezes muitíssimo! Sucedem-se os processos judiciais contra as empresas de electicidade, e tudo isto confirma o que venho escrevendo sobre o assunto e, mais importante, a natureza totalitária deste movimento. O qual se reclama de uma visão utópica de "salvação" da Humanidade mas com a particularidade de se sustentar em interesses económicos bem definidos e subsídio-dependentes, visto que, por tudo que expus, não há viabilidade para esta política que se baseie na sã procura de soluções para problemas reais, ou seja, na lógica de mercado. O que é uma característica que distingue os fascismos de outras ideologias totalitárias. Neste caso, o ecofascimo
Por cá, temos em curso uma experiência destas em Évora. Vamos ver...

1 comentário:

Anónimo disse...

Mais um exemplo de projectos megalómanos sem o menor estudo sério de custo/beneficio...