domingo, março 13, 2011

O "teste" sísmico japonês à segurança das centrais eléctricas - AUTO-CRÍTICA

Tenho que admitir que me precipitei estupidamente na avaliação do "teste" sísmico às centrais eléctricas japonesas, ontem.
Em primeiro lugar quanto ao número de mortos causados pelo sismo, e na comparação que fiz com o Haiti.
Dei como definitivos os mil mortos que aparentemente as autoridades japonesas, segundo os media, anunciavam, quando a experiência haitiana já devia ter ensinado que, imediatamente a seguir a um cataclismo destes, com as comunicações cortadas, as estradas destruídas e uma imensa confusão e estupefacção nos sobreviventes, todos estes pensam que nas povoações e bairros vizinhos se estará tão vivo como eles - e, só depois e a pouco e pouco, se vai percebendo a verdadeira dimensão da tragédia.
Aconteceu no Haiti no ano passado: primeiro eram alguns milhares de mortos, depois talvez umas dezenas de milhar, e só ao fim de uma semana se soube a verdadeira dimensão da tragédia, que ainda continuou a matar os soterrados e esfaimados e feridos por vários dias, até se chegar ao horrível número de 316 mil mortos!!!
Aliás, e ainda por cima, para confirmação da minha estupidez, o mesmo cenário de conhecimento progressivamente crescente do número de mortes já tinha acontecido com o tsunami de 2004 na Tailândia e na Indonésia!...
Dos 665 mortos imediatos e mil estimados logo depois do sismo japonês, fala-se agora em dez mil, mas provavelmente serão algumas dezenas de milhar. Há navios e comboios que desapareceram, numa pequena cidade a norte não se sabe de metade da população de vinte mil pessoas, e as "várias" casas varridas pela enxurrada resultante do rebentamento da barragem de Honshu são agora "muitas" casas! Só daqui a uma semana, provavelmente, se terá uma verdadeira noção da catástrofe!
Depois, há as réplicas.
No Haiti houve 6 réplicas. Aqui registaram-se 80, e algumas delas atingindo quase os 7 pontos na escala de Richter, isto é, quase tanto como o próprio sismo do Haiti!
E, ao que diz a TEPCO, terá sido uma dessas réplicas, de intensidade 6.7, que neutralizou os trabalhos de introdução da última barra de grafite no reactor nº 1 de Fukushima I e que terá avariado os sistemas de emergência montados para a refrigeração dos reactores nº 1 e 2 da Central.
Quanto a isto, entretanto, cometi uma precipitação adicional: dei como definitivos os comunicados da TEPCO, quando o das 5 PM de ontem, que dava como colocada a última barra de grafite, foi depois retirado pela empresa para anunciar no seu lugar a explosão do circuito de água pressurizada do reactor na sequência da réplica sísmica ocorrida durante os trabalhos.
Ora sem dúvida que a situação no reactor nº1, e talvez também no nº 2, de Fukushima I, é grave. O rebentamento do circuito de água pressurizada, que com toda a probabilidade ocorreu, destruiu como em Chernobyl a cobertura do edifício - exactamente uma das situações para que as novas nucleares de III geração são projectadas e construídas para que não suceda. Mas Fukushima I é a mais velha das nucleares japonesas, da mesma geração tecnológica de Chernobyl e Three Miles Island, projectada nos anos 60 e cujos 6 reactores foram montados nos anos 70.
O reactor nº 1, agora na eminência de ter o seu sarcófago de aço derretido, foi o primeiro montado no Japão, em 1971 - há 40 anos!
Há uma semelhança entre um reactor nuclear e um avião: ambos não podem simplesmente desligar os motores, em caso de necessidade. Tal como um avião tem que aterrar primeiro, e só depois pode desligar os motores senão cai e destrói-se, um reactor nuclear tem que primeiro introduzir as barras de grafite que abafam a reacção nuclear e só depois pode desligar gradualmente a circulação da água pressurizada, senão a produção de calor continua até à destruição do reactor. São dois produtos da inventividade humana cuja segurança assenta inteiramente na operacionalidade da tecnologia com que foram feitos. Como engenheiro, confesso, essa é uma das razões porque gosto tanto de aviões e da energia nuclear...
Mas tudo indica que se trava uma luta desesperada para impedir que o sarcófago derreta, deitando-lhe água e ácido bórico para cima em substituição da refrigeração (e modeação da reacção nuclear) que o circuito de água pressurizada obviamente deixou de cumprir. O objectivo é, evidentemente, impedir que o seu conteúdo saia para a atmosfera, mas que já haverá fugas no interior da central é patente: a presença de césio é uma prova irrefutável, e já houve um trabalhador hospitalizado por dose excessiva de radiações!
O reactor nº 1 está condenado, e esperemos que o seu vizinho nº 2 esteja em melhor estado. Mas o Japão é um país aberto e que pediu de imediato a ajuda internacional, ao contrário da URSS de 1986 em que Chernobyl aconteceu, e por isso acredito que o problema acabe por ser definitivamente controlado e os estragos contidos ao interior da Central.
O Japão está a ser submetido a uma provação terrível que só posso desejar nunca venha a acontecer em Portugal. Quando por cá acontecer uma coisa semelhante (o terramoto de 1755 foi de intensidade parecida, àparte as réplicas), receio que a mortalidade e a destruição sejam mais comparáveis às do Haiti que às do Japão, e num caso desses o estado em que ficarem as centrais eléctricas não será das preocupações mais prioritárias, no meio de toda a devastação...!
Entretanto, este evento mostra as consequências da hipocrisia que tem vindo a nortear muito do Ocidente quanto à política de energia nuclear: por um lado vários países evitam a construção de centrais novas, modernas e muitíssimo mais seguras, de III geração, mas ao mesmo tempo vão prolongando a vida destas antigas de II geração, já com 40 anos e mais, projectadas e construídas sem incorporarem os ensinamentos destes acidentes! É como se por medo de se andar de carro não se comprasse um destes automóveis modernos com ABS e controlo automático de estabilidade, cintos de segurança com pré-tensores, habitáculo indeformável e zonas programadas de deformação no chassis mas, depois, porque se continua a precisar de andar de carro, se continuasse a usar os feitos há 40 anos e que não têm nada disso...
E, retomando a analogia com os aviões, as centrais de III geração têm ou motores e sistemas de controlo extra e redundantes, como os modernos aviões (solução EPR francesa), ou capacidade de planarem até aterrarem em segurança mesmo sem motores (solução APR americana).
O certo é que, com os progressos tecnológicos que muito devem aos acidentes do passado, andar de avião é hoje muito mais seguro que andar de automóvel.
E, no caso das centrais eléctricas do Japão e do seu "teste" sísmico, veremos, no fim, se morreram mais pessoas devido a este acidente em Fukushima I ou ao rebentamento da barragem da central hidroeléctrica do nordeste, região sobre cujas perdas ainda pouco se sabe.

9 comentários:

Anónimo disse...

Fica sempre bem admitir os erros que se cometem, é assim que se definem os homens de valor.

Pedro, Montijo disse...

Isso tudo pode ser certo. Mas qual é a quantidade de resíduos que se formam, para onde vão e como são tratados? Os locais onde se situam os resíduos dessa meia centena de centrais não foram afectados, ou seja, não há perigo de existir contaminação nuclear por exposição desses resíduos?

Pinto de Sá disse...

Pedro Montijo: sobre os resíduos e o seu tratamento, encontra uma introdução pedagógica no post que escrevi em 2009.
Constituem, por cada reactor e por ano, um pequeno contentor vitrificado do tamanho de um caixote do lixo de rua, e são guardados em geral nas caves das próprias centrais. Até que um dia venham a ser usados como combustível das futuras centrais de IV geração.
Não têm nada a ver com o problema que está a ocorrer. Este problema que está a ocorrer também está explicado nesse tal post. Vá á rubrica "nuclear" e ao post mais antigo...

Anónimo disse...

Caro Pinto de Sá,

Só o sobressalto da comunidade internacional relativamente à possibilidade de uma catástrofe nuclear é suficiente para fazer pensar duas vezes na adopção da tecnologia.

E não me parece que seja comparável este problema com o da destruição da barragem. Em termos directos este último evento pode causar mais baixas mas em termos indirectos o da contaminação nuclear irá criar muitos mais.

Não partilho da visão toldada de que existem formas de tecnologia que devem ser desconsideradas logo de início. Devem ser sempre analisados prós e contras de cada tecnologia e se possível arranjar espaço para todas elas no portefólio eléctrico de um país. Em certos países como o nosso em que é de comum acordo que nunca iríamos estar preparados para um evento desta magnitude, penso que a opção de desconsiderar energia nuclear nos favorece. Corríamos o sério risco de ver um cogumelo gigante após um sismo destes...

É de facto inglório ver o número de baixas sempre a aumentar e a tendência é sempre aumentarem exponencialmente neste casos.

Aproveito para lhe dar os parabéns pelo bom texto.

Vince disse...

Caro professor, deixo-lhe um link para a conferencia de imprensa desta manhã, ao inicio não tem áudio, mas a partir do minuto 2 tem e com tradução áudio para inglês

http://www.ustream.tv/recorded/13320454

Anónimo disse...

"Corríamos o sério risco de ver um cogumelo gigante após um sismo destes..."

É fisicamente impossível haver uma explosão de origem nuclear num reactor deste tipo. O combustível não é o apropriado e não existe em quantidades suficientes para explodir como uma bomba atómica.
As explosões que se observaram em Chernobyl e agora em Fukushima Daiichi fora de origem química, isto é, reacção de combustão. No caso da central do Japão foram explosões de hidrogénio que é criado quando a água entra em contacto com as células de combustível. Devido à falha do sistema de arrefecimento, a temperatura destas "células" aumentou expondo o hidrogénio ao ar, que rapidamente reagiu, explodindo.

Ao que parece há um 3º reactor em sarilhos também.

O mais irónico é que esse reactor de 40 anos estaria a duas semanas do seu desmantelamento. Parece que foi para reforma antecipada...

Outra coisa que gostaria de sublinhar é o facto de quando existem este tipo de catástrofes haver sempre certas pessoas que se servem da ignorância das pessoas para espalhar o medo. É o caso deste link ridículo que eu anexo, que nas condições em que é redigido, só dá mesmo para rir:

http://www.snopes.com/photos/technology/fallout.asp

Cumprimentos

Anónimo disse...

Chernobyl 25 years later: Many lessons learned

1. Mikhail Gorbachev

http://bos.sagepub.com/content/67/2/77.full#sec-3

http://bos.sagepub.com/content/67/2/77.full.pdf+html

Anónimo disse...

Ponto um: no momento em que centrais como a que agora está a falhar foram construídas e aprovadas, não estavam também garantidas para todo o seu tempo de vida todas as condições de segurança, como agora estão para as de nova geração? O que nos garante que estas não terão também problemas sob condições extremas?
Um segundo ponto: compara-se muito o efeito catastrófico das falhas nas centrais nucleares ao das grandes hídricas. No entanto, embora potencialmente mais destrutivos no curto prazo após um acidente, os acidentes com hidroeléctricas têm um impacto limitado no tempo. Não obrigam a que se abandone uma área inteira após um acidente catastrófico. As nucleares potencialmente sim. A crise que agora se iniciou pode levar meses a resolver.
Ponto 3. As necessidades de manutenção e de resposta a crise no caso de um acidente nuclear requerem mais que capacidade civil de reconstrução. O custo da formação de pessoal numa área em que temos pouquíssima tradição, da criação de recursos especializados para uma única ou no máximo duas centrais, da criação de um regulador e instituições de segurança (que teriam que ter padrões elevadíssimos), esses custos, dizia, terão que ser contabilizados em acréscimo às normais contas com a construção, financiamento, manutenção... Portugal alguma vez estaria em condições de garantir, sem custos elevadíssimos, a segurança de uma central deste tipo?

Nota: não sou, como outro comentador acima, antinuclear por princípio, mas acho que estes factores devem pesar no momento de fazer a escolha para o futuro da energia em Portugal. E parece-me que o risco com o nuclear faz os custos e potenciais perdas levar as escolhas para outras tecnologias. A tradição, a escala e a perda potencial, em geral não contabilizadas nas suas contas, tem peso económico e este não pode ser posto de parte.

Anónimo disse...

Por distracção, o comentário anterior seguiu sem assinatura.
Cumprimentos,
Pedro Moreno