segunda-feira, março 21, 2011

Sobre radioactividade de origem nuclear

Os trabalhadores da central nuclear de Fukushima trazem consigo um "medidor cumulativo" de radioactividade que monitoriza o total anual recebido, de modo a limitá-lo a 20 mSv, em média, ao longo de 5 anos, não devendo ultrapassar 50 mSv num só ano, e que foi elevado recentemente para 100 mSv no Japão. Este valor é atingido, para um horário de trabalho normal, com uma radioactividade média de 54 microSv/hora (1mSv = 1000 microSv). Se a radioactividade fosse recebida permanentemente a uma taxa constante, o referido limite anual seria atingido com 11 microSv/hora.
O diagrama de excelente rigor neste hyperlink compara diversas fontes e valores de exposição.
Aqueles limites cumulativos anuais contêm uma grande margem de segurança relativamente aos menores efeitos patológicos conhecidos. Com efeito, a Comissão Internacional para a Protecção Radiológica (ICRP), que monitoriza todos os estudos científicos na matéria, recomenda por precaução o princípio ALARA ("As Low As Reasonably Achievable"), o que significa que os limites geralmente recomendados para situações correntes são em regra muito prudentes, mas admite 3 níveis diferentes de segurança: para condições normais, para exposições planeadas, e para situações de emergência.
O valor máximo de exposição humana à radioactividade até ao qual não está cientificamente comprovado qualquer efeito patológico é de 100 mSv. O limiar comprovado a partir do qual há patologias agudas registadas é de 1000 mSv, mas o ICRP assume, prudentemente, que a radioactividade é sempre danosa a longo prazo - 5 a 20 anos - para o ADN, e estipulou algo arbitrariamente que o risco de cancro aumenta linearmente com a dose recebida sem limiar mínimo (portanto a partir de 0), à taxa de 5.5%/Sv, o que dá 0,55% para os 100 mSv). O ICRP assume também que o efeito da radioactividade é cumulativo no tempo, pelo que os limites recomendados não são diferentes se uma dose for recebida numa hora ou somada ao longo de um ano.
Porém, os seres humanos estão expostos quotidianamente a fontes radioactivas naturais e artificiais e dispõem de uma grande resiliência a essa radioactividade, pelo que esta não é um perigo absoluto; o perigo depende do valor relativo da radioactividade.
Numa cidade como Londres, por exemplo, a radioactividade natural ambiente é de 0,35-0,5 microSv/hora. O valor médio nos EUA, considerando também as fontes de radioactividade artificial, é de 6.2 mSv/ano, mas as tripulações de voos de longo curso, por exemplo, recebem em média +9 mSv/ano (a alta altitude a exposição é maior).
Ao longo de toda uma vida de 80 anos recebe-se, contas feitas e apenas da radioactividade ambiente, cerca de 500 mSv. Obviamente isto não faz o mesmo efeito que receber tal dose toda numa hora! Ou, pior ainda, tal dose horária durante 7 a 10 horas de trabalho seguidas, totalizando 3.500 a 5.000 mSv, o suficiente para matar 50% dos atingidos (e a totalidade se os sobreviventes não forem medicados). O limiar da morte certa é de 10.000 mSv.
Da mesma forma, se falarmos dos níveis para os quais não há consequências agudas (com sintomas) mas prováveis consequências crónicas (a longo prazo: cancro, cataratas ou envelhecimento precoce), e que se situam entre 100 e 1000 mSv, embora este valor seja atingível com 11 a 110 microSv/hora permanentes, obviamente essa radiação não tem qualquer efeito se for recebida apenas durante algumas horas!
Acontece que a Humanidade tem infelizmente uma considerável experiência do efeito das libertações maciças de radioactividade. Desde que " a bomba" foi inventada, em 1945, e até que em 1963 um tratado internacional baniu esses testes, os EUA, a URSS e a Inglaterra fizeram explodir na atmosfera 570 bombas nucleares, e mesmo depois dessa data a China e a França, que não assinaram o tratado, continuaram a fazer explodir bombas nucleares na atmosfera até 1980 (+73 explosões atmosféricas só por estes 2 países)!

Não são conhecidas consequências patológicas confirmadas da radioactividade assim gerada, com excepção da primeira bomba de Hidrogénio testada pelos EUA no atol de Bikini, em 1954, mil vezes mais poderosa que a de Hiroshima! A radioactividade subsequente desta bomba afectou seriamente 23 pescadores japoneses que se encontravam na região, matando um deles em poucos dias e 11 outros em poucos anos, vitimando também habitantes das ilhas Marshall, onde houve mais tarde casos de crianças com más-formações congénitas e leucemias tardias, estimando as autoridades locais um total de 840 mortes por causa disso nos 20 anos seguintes à explosão (mas que há que ponderar com o facto dos EUA terem indemnizado as populações e o governo local e poder por isso haver algum interesse económico nestes números).
Esta história ficou bem conhecida em todo o Mundo nos anos posteriores, (na figura, a forma como a sua nuvem radioactiva espraiou as 10 toneladas de resíduos da bomba), mas o nível de radioactividade registada na região atingiu os vários milhares de mSv.
No caso do acidente de Chernobyl em 1986, nas primeiras horas após a explosão do circuito de refrigeração do reactor, da destruição deste e da cobertura do edifício que o continha, enquanto o seu conteúdo exposto ardia a céu aberto e enviava durante 10 dias para as nuvens as suas cinzas, a radioactividade medida ao pé do reactor foi de 6000 mSv!
Após 20 anos de seguimento dos afectados, a ONU elaborou em 2008 um relatório final sobre Chernobyl (acessível integralmente aqui), em que fez o balanço dos efeitos a curto e a longo prazo do acidente.
As doses médias de radioactividade recebida, sem contar a ingerida posteriormente em alimentos envenenados (principalmente leite) variaram entre 120 mSv para os 530 mil trabalhadores que estiveram envolvidos no aterro do reactor e 1.3 mSv para os 98 milhões de habitantes das repúblicas da Ucrânea e Bielorrúsia, passando por 31 mSv para os 115 mil evacuados do perímetro da central. Estes valores médios escondem uma grande variância individual.
Da totalidade destes casos, segundo o referido relatório da ONU, terão morrido em prazo curto 28 trabalhadores de 134 com sintomas agudos devidos à radioactividade, e mais 19 nos 20 anos seguintes mas de razões que foram da cirrose à tuberculose, sendo por isso muito difícil distinguir os que foram vítimas tardias da radioactividade.
Na restante população, de causa atribuível à radioactividade observaram-se cerca de 4000 casos adicionais ao expectável de cancros na tiróide em crianças menores de 18 anos e que, à taxa de mortalidade típica desta doença (2% ao fim de 5 anos, e 5% ao fim de 30 anos), poderão vir a causar algumas centenas de mortes adicionais. Estes cancros na tiróide resultaram da ingestão de leite contaminado e não houve outras mortes confirmadas devido a Chernobyl - aliás, as autoridades médicas só identificaram até agora 9 mortes confirmadas causadas por estes cancros! No entanto, alguns trabalhos assumiram a "hipótese linear" do ICRP de 0,005%/mSv de incremento de risco de cancro, sem limiar mínimo, para chegarem à contabilidade de 4 mil mortes, mas convém atentar em que tal se baseou na referida "hipótese linear" de risco, e que não há confirmação científica de casos de cancro para exposições inferiores a 100 mSv, àparte a ingestão por crianças de alimentos contaminados (a tiróide adulta é muito mais resistente e pouco vulnerável).
Claro que de Chernobyl resultaram milhares de doentes e afectados, com doenças em que predominaram as cataratas. Mas a maioria dos doentes da altura recuperou.
Claro que o acidente de Chernobyl foi terrível, e não pretendo minimizá-lo como justificação da energia nuclear. Pretendo, isso sim, pôr as coisas na sua base racional e factual, exorcizando terrores irracionais que confundem guerra nuclear com energia nuclear e manipulações que jogam com a ignorância e o medo que dela se alimenta.
A Fukushima voltarei em breve. Mas, é já óbvio que nada do que aconteceu em Chernobyl se repetiu ali, apesar do terrível cataclismo natural que se abateu sobre o Japão e aquela central.
Como engenheiro, e dado que não se pode "desinventar" a tecnologia nuclear, sobretudo na sua faceta mais temível, a militar,  considero que o que há é que tirar lições - dos acidentes nas centrais nucleares como das hidroeléctricas rebentadas - e fazer melhor da próxima vez. Sempre melhor!...

5 comentários:

Anónimo disse...

Caro Pinto de Sá,

Está a pregar no deserto.

Quem não quer ouvir falar em energia nuclear escolheu essa opção como quem escolhe um clube de futebol. Já viu alguém mudar de clube? E, se duvida, atente nos comentários da última semana sobre Fukushima...

JM

Gonçalo Aguiar disse...

Já que estamos a falar de radiação gostava de deixar aqui alguns valores adicionais de dose de radiação equivalente em Sievert só para termos um termo de comparação:

->Dormir ao pé de alguém: 0.05 uSv

->Viver a 80 km de uma central nuclear durante um ano: 0.09 uSv

->Comer uma banana (devido a um isótopo do potássio): 0.1 uSv

->Viver a 80 km de uma central de carvão: 0.3 uSv

->Radiografia ao braço: 1 uSv

->Usar um monitor de tubos de raios catódicos durante um ano: 1 uSv

->Radiografia aos dentes: 5 uSv

->Dose extra absorvida diária por viver numa vila perto da centra de Fukushima (a 17 de Março): ~3.5 uSv

->Radiação de fundo absorvida durante um dia: 10 uSv

->Viagem de avião de Nova Iorque até Los Angeles: 40 uSv



Acho que depois disto, é legitimo dizer que temos todos de deixar de andar de avião com medo da radiação...

Não há nada a temer desta "fuga" de Fukushima.


Fonte: http://xkcd.com/radiation/

Gonçalo Aguiar disse...

Gostaria de adicionar ao que disse um facto interessante. Segundo a fonte que referenciei, durante uma viagem de avião NY -> LA o nosso corpo absorve mais radiação que numa cidadezita perto da central de Fukushima. Isto quer dizer que todos os cidadãos estrangeiros que têm vindo a fugir do Japão com medo da radiação vão apanhar mais radiação na viagem de fuga do que se tivessem perto da central!
A ironia das coisas...

Anónimo disse...

Aposto que nas cenas dos próximos capítulos vamos continuar a assistir à colagem de Chernobyl a Fukushima... como sucedeu ontem com a TVI.
Ferreira Rodrigues

Carlos Portugal disse...

Caro Colega Pinto de Sá:

Em relação ao que escreveu o Caro Comentador JM, não creio que esteja, de forma alguma, a pregar no deserto. O Caro Colega está brilhantemente a fornecer informações preciosas e abalizadas acerca do que ainda ocorre em Fukushima.

Só que os partidários da nova «religião verde» são fanáticos e fundamentalistas, e usam e abusam das velhas técnicas de fazerem muito barulho, não ouvirem quaisquer explicações que contrariem a sua convicção cega, e agora que lhes deram acesso aos mass media...

Assim, comentários absurdos desta gente fanática, destes talibãs ecotópicos - ao serviço sabe-se lá de que interesses - nada mais significam de que o Caro Colega está no caminho certo e os está a incomodar. Os seus postais não são dirigidos a eles, mas a pessoas com bom senso e, se possível, com formação académica não «simplex»...

Bem haja pelo óptimo serviço que nos está a prestar, e aceite um caloroso abraço.