sábado, abril 23, 2011

O mix eléctrico europeu: I - Sul e Centro

Muita gente em Portugal, despertada para a questão pelo acidente de Fukushima-Daiichi, ficou surpreendida ao descobrir a importância da componente nuclear na produção de energia "lá fora". De facto, a avaliar pelo silêncio sobre energia nuclear em Portugal dos media, políticos e académicos, esta seria uma curiosidade histórica, quiçá uma extravagância científica de alguns Físicos do Instituto Superior Técnico...
Esta ignorância é o fruto do tabu que o Governo, o lobby eólico e a esquerda "radical" ecotópica (ecologista utópica) criaram, assente na ignorância científica e na tradicional aversão à tecnologia industrial de um povo saído quase directamente do mundo rural para o deslumbramento dos centros comerciais...
Lembrei-me, por isso, de fazer um pequeno tour por esta Europa a que nos oferecemos no rescaldo do abandono das seculares posições ultramarinas, de modo a mostrar a realidade do que respeita às políticas energéticas dos nossos vizinhos e parceiros.

No conjunto, a Europa dos 27 produz 28% da sua electricidade a partir de centrais nucleares, 27% a partir do carvão, 23% a partir de gás natural, e 3% a partir de petróleo. A energia renovável divide-se em 10.5% de hídricas, 4% de eólicas e 3.5% de biomassa. Sim, por mais que isso espante, o nuclear é a principal origem da electricidade da União Europeia e é também a sua principal fonte não emissora de CO2...!

A Espanha, cujo consumo anual per capita é de 5,67 Mwh e que no total consome 6 vezes o que nós consumimos, tem 8 reactores nucleares, com apenas 7.5% da potência total instalada mas que geram 20% da sua electricidade. Foram construídos entre 1964 e 1986, mas depois de Chernobyl (1986) a Espanha desistiu de outras três centrais que estavam planeadas, embora tenha vindo a aumentar a capacidade das existentes.
A restante termo-electricidade é produzida a partir de carvão (10%, parte dele espanhol) e gás natural (30%, importado da Argélia). As renováveis hidroeléctricas e eólicas geram respectivamente 15% e 17%, e há ainda uma produção exorbitantemente cara de 3% de energia solar, com 1.6% de toda a intermitente electricidade eólica e solar perdida em dispendiosa bodmbagem. O resto vem de biomassa, lixos, etc. Os preços da electricidade espanhola são pouco superiores aos nossos (e é no IVA que o são) e têm ajudado a desenvolver uma indústria de aerogeradores de tecnologia genuinamente espanhola que exporta bem (GAMESA), mas o défice tarifário de nuestros hermanos vai em 16,5 biliões (milhares de milhões) de €...

Continuando o tour, a França, cujo consumo per capita é de 6,8 Mwh, é o grande produtor de electricidade da Europa: exporta quase 1/4 da sua produção, de que 75% é de origem nuclear (incluindo indirectamente para Portugal, que importa de Espanha praticamente a mesma quantidade que esta importa de França). Tem 58 reactores de concepção e fabrico nacionais, sendo aliás o único país europeu com uma sólida indústria fabricante de reactores, na AREVA. Esta aposta na energia nuclear seguiu-se ao choque petrolífero de 1973 e consolidou-se nas décadas de 80 e 90, mas a França também gera electricidade a partir do carvão e gás natural (9% destas fontes), hídricas (12.5%) e de eólicas, biogás e biomassa (2.7%). A electricidade em França é cerca de 40% mais barata que por cá e a EDF acaba de pôr no mercado livre boa parte dela a partir de Julho, a 4,0 ç/kwh...

A seguir neste tour temos a Itália, que também consome 10% da sua electricidade de origem nuclear, mas... francesa! Presentemente, com um consumo anual per capita de 5,5 Mwh, a Itália importa 1/7 da electricidade que consome, de França e da Suíça, e daí a componente nuclear no seu consumo (metade da electricidade importada vem da Suíça, mas esta por sua vez importa-a de França e da Alemanha). Da que produz, 54% é gerada a gás natural, 15% a partir do carvão, 9% de petróleo, 14% de hídricas e 3% de eólicas. O preço da electricidade em Itália é praticamente o dobro do francês, e isto resulta essencialmente do seu mix, muito dependente do gás e do petróleo e de importações (e altamente poluidor). E porque é isto assim em Itália?
Porque um referendo em 1987 decidiu, no rescaldo de Chernobyl (1986), encerrar as 4 centrais nucleares de que a Itália dispunha! E, no entanto, a Itália tinha sido pioneira no uso da energia nuclear, tendo a sua primeira central (de concepção inglesa) a funcionar no início dos anos 60 e tido sempre uma activa participação na I&D internacional na matéria!...
Com tanto consumo de gás natural, totalmente importado de países de estabilidade duvidosa (especialmente Argélia e Rússia), em 2009 a Itália decidiu regressar ao nuclear, planeando vir a ter 25% da sua produção energética a partir dessa fonte até 2030, com 4 centrais já previstas a serem construídas com a colaboração da EDF. Porém, os opositores políticos do actual Governo, que incluem os herdeiros de uma extrema-esquerda radical, conseguiram que a questão vá de novo a referendo, o que estava previsto para Junho mas, com os acontecimentos de Fukushima e uma sondagem a indicar 70% de oposição à energia nuclear, o Governo decidiu adiar qualquer nova decisão na matéria...

Prosseguindo a viagem, a Áustria, com uma população um pouco menor que a nossa (8,3 milhões), uma área semelhante e um consumo per capita de 160% o nosso, produz a grande maioria da sua electricidade a partir de hídricas alpinas (mais de 50%), mas também da biomassa, queima de lixo e eólicas, totalizando a produção renovável 65% do seu mix. A produção hidroeléctrica austríaca é ímpar na Europa, tendo sempre aquele país explorado muito bem as excelentes condições naturais dos Alpes para isso! No entanto, os preços da electricidade na Áustria são superiores à média europeia...

A Hungria, antiga parceira da Áustria no Império dos Habsburgos e com a mesma população que nós, não tem Alpes, e por isso a sua produção de electricidade é quase toda de origem térmica: 37% nuclear38% a gás natural, 17% a carvão, e o resto essencialmente biomassa (4.5%). A parcela nuclear é produzida por 4 reactores pequenos (470 MW cada), de origem russa (anos 80). A Hungria que, juntamente com os seus vizinhos, tem uma dependência do gás natural russo de que não gosta, tem porém uma electricidade muito barata, mesmo ligeiramente mais que a francesa, mas ainda assim o seu consumo per capita é apenas 80% do nosso (e metade do do seu vizinho austríaco) e tem que importar 10% da electricidade que consome da vizinha Eslováquia. Em 2009 o Parlamento húngaro aprovou (por uma maioria de 95%) um ambicioso programa para resolver esta dependência equipando-se até 2030 de 6000 MW de centrais... nucleares. Mas agora das grandes e modernas!...
Vale a pena notar que o poder político magiar tem um forte pendor nacionalista, o que talvez explique a falta de coragem de Bruxelas para contrariar esta decisão húngara... 

Da Hungria descemos à Eslovénia, um paísito com 2 milhões de habitantes mas com um consumo per capita de 6,0 MWh, bem superior ao nosso. 40% da electricidade que consome é nuclear, de um único reactor de concepção americana partilhado a meias com a vizinha Croácia. O resto da electricidade é gerada sobretudo a partir do carvão e gás natural (30%), hídricas e geotermia (24%), mas a "EDP eslovena" propôs ao Governo a construção de um 2º reactor nuclear, desta vez sem partilha com a Croácia, e que aguarda decisão do Parlamento. Esta decisão, inicialmente apontada para o corrente ano de 2011, foi agora adiada, com Fukushima e um manifesto desagrado de Bruxelas por esta opção eslovena. A alternativa mais encarada para as necessidades de curto prazo é um reforço da queima de carvão, o que leva a questionar se com isso o país cumprirá a meta de redução das emissões de CO2 em 20% para 2020. Mas, quanto a isso, o Governo esloveno assobia para o ar, pois é evidente que a sua prioridade é manter os preços da electricidade entre os mais baixos da Europa, apenas ligeiramente superiores aos franceses, e para isso não tem saída para o dilema entre o carvão e o nuclear.

A sul temos depois a Grécia, o nosso companheiro de ranking habitual desde há 40 anos e com um consumo per capita 13% superior ao nosso e 11 milhões de habitantes. Porém, ao contrário de nós mas em harmonia com os seus vizinhos, a Grécia mantém os preços da sua electricidade entre os mais baixos da Europa (apenas 60% da média europeia), graças sobretudo a ter 60% da sua geração assente em carvão nacional. Tem também, no entanto, uns 8% de produção a petróleo, mas por causa das suas muitas ilhas (as ilhas baseiam sempre a sua geração eléctrica em Grupos Diesel, na Grécia como em Portugal). No continente, ao carvão a Grécia adiciona uns 20% de gás natural, percentagem em crescimento, e também já uma percentagem significativa de renováveis, hídricas (4%) e eólicas (5%).

A Grécia vê-se em apuros para manter o poluente carvão como base da sua produção energética, considerando a "multa" de cerca de 20€/tonelada de CO2 que tem de pagar por causa dele e as exigências de Bruxelas para que reduza essas emissões mas, por outro lado, e dado que as reservas de linhito que tem dão para mais 30 anos e que a sua extracção é um forte criador de emprego, a Grécia não tem manifestado pressa em mandar para o desemprego os seus mineiros para em troca passar a importar areogeradores estrangeiros.
Em 2008 o Governo da altura mencionou publicamente a energia nuclear como solução para o dilema economia vs. ambiente, notando que a energia nuclear era "verde", mas o comissário europeu do Ambiente repreendeu-o de imediato contrariando que "a energia nuclear não pertence ao grupo das energias renováveis", logo secundado por um coro de protestos anti-nuclearistas dos partidos da oposição gregos e pelo Greenpeace.
Apesar da Grécia se ter calado desde então e tentado ser uma "boa aluna" desta ideologia que governa Bruxelas, e dos seus papagaios gregos terem entretanto ascendido à governação no país, a Grécia não parece ter ganho com isso qualquer condescendência europeia quando a bancarrota lhe bateu à porta, como sabemos. Vai até ter que "reestruturar a dívida" (ou seja, declarar falência), parece...

Da Grécia passamos à Bulgária, que tem um consumo per capita muito semelhante ao nosso e 7,5 milhões de habitantes, mas que até 2006 exportava 1/6 da electricidade que produzia para os seus vizinhos, incluindo a Grécia, porque a tinha barata e de sobra, graças... a 6 reactores nucleares de fabrico russo que garantiam 42% da sua produção. O resto era gerado a partir do carvão (41%), hídricas (10%) e gás natural. A Bulgária ainda tem a electricidade mais barata da Europa, a cerca de 40% do preço da nossa.
Quando iniciou as negociações para a adesão à União Europeia, Bruxelas questionou a segurança das centrais nucleares búlgaras, de concepção similar à de Chernobyl, e apesar dos esforços e investimentos feitos para melhorar essa segurança, dos inspectores da Agência Internacional de Energia Atómica e da própria União Europeia terem considerado que com isso 4 dos 6 reactores tinham agora a segurança requerida, apesar das sondagens mostrarem um apoio de 75% da população à continuação dos reactores, a União Europeia exigiu o fecho de 4 deles como condição de ingresso da Bulgária na União. E, assim, a Bulgária encerrou 4 dos seus 6 reactores nucleares em Dexembro de 2006 para ingressar na União Europeia a 1 de Janeiro de 2007. Mesmo assim, os 2 reactores nucleares sobreviventes ainda geram 35% da electricidade búlgara...
Entretanto, e logo que fechou os seus velhos reactores, a Bulgária começou a projectar a construção de 2 novos (de 1000 MW cada), vindo a criar-se uma parceria entre russos, a AREVA francesa e empresas búlgaras, e que obteve a aprovação técnica da União Europeia. A preparação da construção iniciou-se em 2008 mas, em Fevereiro passado (antes de Fukushima), a empresa russa ROSATOM abandonou o projecto: havia muita coisa obscura nos termos do contrato, desde um preço de construção prometido irrealistamente baixo até à inexistência de um compromisso dos russos sobre qual viria a ser de facto o preço final, e o Governo búlgaro começou a hesitar, algo a que se sujeita um país sem instituições reguladoras nem técnicas apropriadas como a Bulgária, que no passado cedera a sua soberania nestes aspectos à URSS. A Finlândia ofereceu-se para dar a devida assessoria técnica, em troca de 1% do valor do projecto, mas a Bulgária não consegue financiamento para o mesmo.
Penso termos aqui um exemplo do que se passaria por cá se avançássemos para a compra de uma nuclear sem estruturas nenhumas preparadas para isso, como tenho vindo a reclamar...

Passando à Roménia, cujos preços da electricidade são cerca de 55% dos nossos e que tem um consumo nacional quase igual ao nosso mas 21 milhões de habitantes, a base da sua geração é também o poluente carvão (40%), a que junta o gás natural (19%), mas que tem também 29% de produção hidroeléctrica e, desde 1996... nuclear. Com um primeiro reactor entrado em funcionamento em 1996 e um segundo recentemente (2007), a Roménia produz já 15% da sua electricidade a partir desta origem, e tornou-se exportadora. Além disso, o projecto de novos reactores prossegue e, depois de ter resolvido sérias dificuldades de financiamento com uma parceria multi-nacional, o 3º reactor deverá entrar em funcionamento em 2016 e um 4º por volta de 2020. Os reactores são também usados para aquecimento distrital e a energia nuclear é a aposta da Roménia para o seu abandono a prazo do carvão e a descarbonização.
É de notar que a opção nuclear romena se iniciou ainda no tempo de Ceausescu e não foi alterada pelo regime democrático entretanto instaurado. No entanto, e não sendo a Roménia um alinhado incondicional da URSS, a opção tecnológica acabou por ser feita, ainda no regime comunista, por reactores pouco usuais: canadianos, de água pesada (CANDU), que não precisam de urânio enriquecido (usam urânio natural).

Prosseguindo para norte chegamos à Eslováquia, que tem 55% do nosso tamanho e população e aproximadamente o mesmo consumo per capita de energia que nós. No domínio do seu abastecimento energético, porém, a História eslovaca é semelhante à búlgara. Não tendo presentemente dos preços mais baixos da Europa (mas ainda apenas 5/6 dos nossos), a Eslováquia tinha em 2006 55% da sua electricidade de origem nuclear, mas a União Europeia exigiu-lhe, como condição de ingresso, o encerramento de 2 dos seus 4 reactores, o que se verificou em 2006 e 2008 apesar dos enormes investimentos feitos para a sua modernização e da sua ratificação tanto pela IAEA como pelos próprios técnicos europeus (a UE tinha exigido esse encerramento para 2000 mas a Eslováquia conseguiu adiar isso até às datas mencionadas).
Os outros 2 reactores foram também melhorados em aspectos críticos de segurança e foram aceites: resistência sísmica, sistema de arrefecimento de emergência e sistema de controlo, mas a percentagem de energia de origem nuclear, que era a base da produção eslovaca, desceu para 30%, e a Eslováquia tornou-se importadora de electricidade, passando por uma grande penúria energética. Presentemente o país tem em construção dois novos reactores, que deverão entrar em funcionamento em 2012 e 2013. Grande parte da tecnologia é da SKODA, que tem uma longa tradição de participação na indústria nuclear do país e da vizinha República checa.
As outras fontes de produção de electricidade são o carvão, o gás natural, e a hidroelectricidade.

Finalmente, terminando esta 1ª parte do nosso tour europeu, chegamos à República Checa, cujo preço da electricidade é de cerca de 80% do nosso, tem a mesma população que nós mas consome per capita 130% do que nós consumimos e exporta 18% da sua produção (nomeadamente para a Eslováquia). Grande produtor de carvão, 62% da electricidade checa é produzida a partir desse poluente combustível, 30% é de origem nuclear, e o resto a partir de gás russo e alguma hidroelectricidade.
Tal como os seus parceiros regionais, os checos sofrem uma grande pressão para reduzirem o uso do carvão por parte dos ambientalistas europeus. E, tal como os seus vizinhos, preocupados em manter os baixos preços da energia a que estão habituados, a sua estratégia para isso é o reforço do nuclear: dois grandes e modernos reactores de 1200 MW estão de construção prevista para ser iniciada em 2013 e entrada em serviço em 2020. Esta estratégia foi ratificada por uma sondagem oficial que mostrou ter o apoio de 77% dos checos, incluindo 56% dos eleitores que votam no partido verde.

3 comentários:

Bruno Carmona disse...

Mais uma vez obrigado e parabéns por este blog que ajuda a desmistificar este tema tão actual e central, quer pelo acidente no Japão quer pelo estado da economia portuguesa.

Muito ainda terá de ser feito para que o senso comum nacional perca o preconceito ignorante em relação à energia nuclear.

Nelson Gameiro disse...

é a primeira vez que venho aqui mas é curioso que a alemanha nao tenha sido incluida

sera por estar a investir massivamente em energias renovaveis para substituir o carvao no futuro e diminuir a nuclear e nao interesa colocar aqui o que eviencia uma certa tendencia contra as renovaveis a favor da nuclear ...

nao sou contra a nuclear para mim o ideal sao energias renovaveis (eolica, hidrica, solar, mares, biomassa, e outras) complementadas por nuclear ate haver outra solução a energia nuclear por ficção que usamos actualmente

Pinto de Sá disse...

@Nelson Aleixo,
A Alemanha não foi incluída aqui por que, como o título do post explica, esta é a parte I - Sul e Centro.
A Alemanha foi abordada na parte II - Norte e Leste, aqui:
http://a-ciencia-nao-e-neutra.blogspot.com/2011/04/o-mix-electrico-europeu-ii-norte-e.html