terça-feira, julho 28, 2009

O que impede as empresas de efectivamente investirem no desenvolvimento de produtos transaccionáveis?

Um leitor deste blog fez esta pergunta, cuja resposta valeria, se a soubesse, "one-million dollars"...

Penso que a questão mereceria por si só pelo menos uma tese de doutoramento (em Sociologia) e provavelmente uma ampla linha de Investigação. Mas, nos muitos anos que tenho de andar por cá preocupado com o assunto, resultaram-me algumas peças do puzle que vou mostrar-vos.

Muito resumidamente sintetizaria a resposta que tenho, assim: o que impede as empresas portuguesas de desenvolverem produtos transaccionáveis inovadores é... o peso da História!

Poderia divagar muito para trás, até ao rei D. Manuel e à expulsão dos judeus, ou mesmo mais longe... poderia recordar D. João III e a chegada da Inquisição na precisa altura em que arrancava o Renascimento, poderia recomendar-vos a leitura de "Portugal no antigo regime" de Vitorino Magalhães Godinho, ou de Eça de Queiroz, ou de Ramalho Ortigão... mas não vou tão longe.

Vou só recordar-vos uma coisa, que vi de perto há uns 30 anos.

No tempo de Salazar, não era um qualquer que abria um negócio e o geria a seu bel-prazer.
Para se poder ter um negócio era preciso alvará, e esse só era concedido se o regime tivesse a certeza que não ia provocar uma concorrência desestabilizadora ao que já havia. A Coca-cola, por exemplo, era proibida, para viabilizar a produção de cervejas nacionais...

Uma vez obtido o alvará, estava-se á vontade porque não havia nem concorrência estrangeira (os mercados eram fechados e a Espanha, coisa incrível, só tinha 3% do nosso comércio externo à data da queda do regime), nem reivindicações salariais (proibidas, bem como os Sindicatos), nem coisas técnicas por definir - os grémios regulamentavam tudo, do tamanho dos parafusos à composição das farinhas!
Como é que neste contexto se geria um negócio?

Bem, organizava-se a produção e os aprovisionamentos de matéria-prima, somavam-se os custos, adicionava-se a margem de lucro limitada por lei a 10%, e com tudo somado obtinha-se o preço de venda. E depois era só distribuir a mercadoria, porque como não havia concorrência a venda estava garantida, qualquer que fosse o preço, embora naturalmente para um mercado pequenino porque éramos muito pobres.

Mesmo que se quisesse ceder aos trabalhadores aumentando-lhes ordenados, o regime não deixava. Nas grandes greves dos anos 40 houve patrões que quiseram contemporizar com os grevistas mas o regime obrigou-os a despedi-los, e não a aumentá-los! O regime achava que isso seria um precedente que podia desencadear uma reacção em cadeia descontrolada e, se havia coisa de que o regime não gostava, era de coisas que não controlasse!

Tecnologia, também, não era preciso tê-la. Comprava-se no estrangeiro, se fosse precisa, ou com uma parceria, como nas coisas grandes, mas em geral evitando coisas que precisassem de tecnologia. A EFACEC, por exemplo, a nossa grande e única fabricante de equipamentos de energia eléctrica, foi criada a partir de uma oficina de rebobinagem de motores (que é apenas o que há nos países atrasados, como por exemplo em Angola hoje em dia) e da ACEC belga, que tinha a tecnologia, aliás por sua vez dependente da Westinghouse americana. Isto em 1948! No mesmo ano foi deixado que a Siemens se instalasse em Portugal, para haver alguma concorrência, e porque Ferreira Dias queria electrificar o país - mas essa Siemens, a grande gigante mundial a par da GE americana, fora criada na Alemanha cem anos antes, em 1848, e ao contrário da EFACEC foi criada com tecnologia própria, a partir de uma invenção do próprio Siemens, uma máquina que transformava em letras impressas o código morse do telégrafo, ou seja, que fazia telegramas!

Vejam agora o que aconteceu quando, só em 1985, Portugal aderiu ao Mercado Comum europeu e foi forçado a abrir as portas à concorrência - 10 anos depois do 25 de Abril.

Agora já não é possível começar pela produção, somar os custos e o lucro legal e assim chegar ao preço que tiver de ser. Agora as coisas passaram a ser ao contrário! Agora para criar um negócio tem de se começar pelo preço-alvo, porque este é imposto pela concorrência e se o nosso for mais caro não se vende, e depois andar para trás, até chegar a custos de produção que permitam aquele preço ou menos e ainda ter lucro - sem o que não há reinvestimento e o negócio não é sustentável!

Ou se têm ordenados muito baixos, mas agora há liberdade sindical e de emigração, ou se consegue organizar a produção melhor que a concorrência, mas ela já o sabe fazer há muito, ou se têm produtos melhores que os dela.
Mas para isto é preciso conceber esses produtos diferentes, e para tal é preciso estar de olhos postos nesse mercado mundial onde se move a concorrência há muito. E isso nunca se tinha aprendido a fazer! E entretanto a tal concorrência leva mais de cem anos de avanço em saber fazê-lo!...

A maioria dos empresários da grande indústria, pura e simplesmente desistiu. A maioria das coisas que se fabricavam com tecnologia estrangeira licenciada só fazia sentido para o mercado nacional. Nos mercados de fora quem nos dera as licenças de tecnologia tinha-as também dado a outros nesses mercados, ou eles próprios os exploravam, e não se podia ir simplesmente competir lá fora com empresas que tinham as mesmas licenças tecnológicas. E por outro lado agora o nosso mercado estava aberto à concorrência de produtos com outras tecnologias que não dominávamos. Por isso muitos desistiram e venderam as fábricas ao estrangeiro logo que puderam.

Mas houve quem resistisse.
Na EFACEC, por exemplo, onde sempre se tentara perceber como eram feitos os equipamentos fabricados sob licença estrangeira, delineou-se uma estratégia. Começar uma nova área de negócios, na electrónica de energia, que complementasse os produtos tradicionais e explorasse os seus mercados, até porque nessa nova área de negócios não se dependia de licenças estrangeiras. E ancorar os novos produtos nos antigos, comercialmente, e tentar manter alguns destes com know-how próprio. E assim foi. Graças a um único homem invulgar que por lá havia e que depois criou uma escola de atitudes e auto-confiança, o Eng.º Renato Morgado!
A história destes 25 anos passados desde aí não tem sido das mais animadoras. A EFACEC já deixou de fabricar muita coisa, por não conseguir aguentar a concorrência internacional. Tem também sido lenta a aprender a mexer-se nos mercados internacionais. Mas ainda aí está, e é do melhor que temos!
Como poderia ser de outra forma?
Quem souber, ganha one-million dollars!... :-)

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem pensado e descrito. Parabens. Gostei de ler. Demonstra um saber pouco comum

Pinto de Sá disse...

Obrigado pelo cumprimento.
É também por pensar isto que não sou grande entusiasta da panaceia que tanto o actual Governo como os think tanks do PSD propugam: as start-up!
Penso que a criação de novas áreas de negócio, tecnológicas, mas articuladas com as empresas tradicionais é que é a solução de que o país mais precisa.
Na EFACEC fiz isso durante 7 anos, desenvolvendo uma nova linha de produtos, as protecções digitais. à EFACEC interessavam pouco, as protecções, mas precisavam delas para viabilizar um seu outro negócio, o dos SCADA. E, na fábrica da ABB na Suécia, explicaram-me que também para eles as protecções só geravam 1% das vendas directas do grupo, mas induziam a venda de mais 10% de produtos...
Afinal, isto já foi proposto: por Porter, no seu famoso relatório encomendado por Mira Amaral quando era ministro, mas de que nunca mais ninguém falou...