O Público de hoje traz uma entrevista com o especialista americano de política educativa Stephen P. Heyneman que nos critica a "criação de leis sem conhecer o que os outros países fazem de melhor".
Não vou falar da entrevista em si, mas sim desta afirmação específica que penso ser certeira como um míssil guiado por GPS. Aliás, tudo o que o Stephen diz nesta entrevista é igualmente certeiro!
Na verdade, o meu incómodo sobre a nossa habitual ignorância e menosprezo pelo que se faz lá fora nem é particularmente no que respeita a leis, mas muito mais no que respeita à tecnologia - à que efectivamente se pratica no terreno sócio-económico, e não à que se publica nas Conferências e revistas de académicos! Vou dar dois exemplos da minha experiência pessoal que considero absolutamente exemplares.
O primeiro passou-se com um projecto de concepção e desenvolvimento de uma linha de produtos de alta tecnologia que há quinze anos fui desenvolver para a indústria, após anos de investigação académica sobre a respectiva tecnologia.
Para começar, esclareço que o próprio facto de "ter ido para a indústria" resultou da convicção de que um produto se desenvolve para dar dinheiro a ganhar a quem o produz, criando empregos sustentáveis, e que por isso tem de ser concebido para ser flexivelmente comercializado, economicamente produzido, e ter uma evolução tecnológica sustentável. Ou seja: o seu desenvolvimento tem de ser feito para as estratégias de marketing que o promoverão, para minimizar os factores de que dependem os custos de produção, e satisfazendo a necessidade de fixação da gente no interior das empresas que há-de manter a evolução do produto. Em suma: um produto tecnológico pensado para ser vendido com lucro em mercados não-monopolistas só pode ser desenvolvido no interior de empresas, e não no da Academia!
Mutatis mutantis, trata-se da mesma posição que levava a Organização estudantil maoísta em que militei nos anos 1970-73 a achar que era preciso "ir para a classe operária" organizar a revolução operária e não pensar em fazê-la no movimento estudantil universitário, posição muito mais fácil (e estéril) de muitos "iluminados" da minha geração (e foi por isso que a UDP, mais tarde, chegou a ter um deputado e os outros grupúsculos maoístas não).
Esta minha posição no desenvolvimento da tal linha de produtos foi coroada de sucesso e eles lá estão em produção, cada vez melhores e exportando-se bem. Claro que isto não contribuiu em nada para a minha carreira académica e não são poucos os meus colegas que acham que eu com isto "traí" a Universidade...
Porém, houve outra orientação que pratiquei nesse desenvolvimento da linha de novos produtos: além de estudar dentro da empresa com que fui colaborar as estratégias de marketing e de produção, comecei por fazer um estudo sistemático de todos os produtos estrangeiros que se faziam à época e com que os nossos iriam concorrer. No fundo, adaptei o que se aprende na Investigação académica: antes de se pensar em inovar nalguma coisa, há que se informar bem do que já existe. E, nesse processo, abri e estudei todos os produtos estrangeiros que pude, além do estudo dos seus manuais e definições de produto.
Ora o curioso é que, embora eu tivesse feito isto dentro de uma empresa que é das melhores que temos em termos tecnológicos e comerciais, o facto é que tal prática era algo nova por lá, o que muito me surpreendeu. Muitas das sugestões iniciais que recebi na empresa e que pareciam criativas, por exemplo, não correspondiam ao que os "outros" faziam e, em vez de desdenhar deles como era algo habitual, parti do princípio que esses "outros" não eram parvos e que deviam ter boas razões para fazer como faziam, as quais importava descobrir. E assim evitei muito trabalho fadado ao fracasso e muito aprendi com os concorrentes, ainda que um ou outro dos seus produtos fosse mesmo mau. Isto até tem um nome clássico na gestão de tecnologia, o de "reverse engineering", mas que por cá é frequentemente visto como algo desprezível. O mesmo desprezo que se tinha pelos japoneses, que também copiavam tudo quando começaram...
O segundo exemplo de provincianismo nacional no domínio tecnológico que quero mencionar é algo mais recente: o das regras técnicas de ligação à rede da EDP das instalações de energia renovável.
Uma rede eléctrica é um gigantesco organismo onde tudo o que lhe está ligado se relaciona e em que todos os equipamentos geradores de energia têm de funcionar sincronamente, como os membros de uma orquestra sinfónica. Um gerador que "desafine" pode prejudicar gravemente a actuação do conjunto e, se um grupo inteiro de geradores perder o ritmo e parar de tocar, toda a "orquestra" se desconjunta e pode ser forçada a parar - o chamado "apagão".
Ora os produtores independentes de energia renovável (e não só) não são pagos por funcionarem bem sincronamente. São pagos apenas por "emitirem som", digamos assim, ou seja, pela energia que fornecem mas não pelo modo como o fazem. Portanto, para que eles não "desafinem" a rede toda têm que obedecer a regras, quanto ao modo como "fazem o som". E portanto essas regras têm que existir.
Há uns anos, um estudo feito em Portugal mostrou que certos incidentes que podem ocorrer na nossa rede eléctrica poderiam levar a um grande apagão peninsular, quando a quantidade de energia eólica atingisse um certo valor, e se não se definissem algumas regras técnicas para o modo como os "renováveis" se ligam à rede. Estudo idêntico feito pouco antes em Espanha chegara à mesma conclusão lá. Ora esse valor de energia eólica está quase a ser atingido, e essas regras não existem ainda!
Feita uma digressão pelas práticas dos outros países, verifica-se que quase todos os que têm energia renovável com tanta importância como a nossa há muito que definiram regulamentos e/ou legislações precisos e adequados para as condições técnicas dessas ligações à rede, e que vão colaborando com as suas indústrias nacionais de turbinas para que elas implementem as soluções técnicas necessárias. Alguns nem têm muita energia renovável e têm regras de alta qualidade técnica, como a França, outros nem são grandes potências e têm regulamentos excelentes, como a Irlanda, e só a Espanha, que infelizmente hoje em dia tende a ser a nossa referência tecnológica (substituindo a tradicional França), se aproxima do nosso grau de probreza na matéria. Porque, de facto, a questão da existência destas regras técnicas tem passado completamente ignorada dos nossos decisores na matéria, constituindo mais um aspecto em que nos distinguimos decisivamente dos outros - pela negativa. E se a Espanha não está muito melhor que nós, ao menos eles têm uma Gamesa e 40 mil empregos "eólicos" para proteger...!
Ora o extraordinário é pretendermos ser líderes tecnológicos em "redes eléctricas inteligentes" alegadamente por causa do futuro radioso e "renovável" que está a nascer, e depois termos esta vergonhosa situação na gestão da rede eléctrica real que existe!
Mas porque não começamos por ver o que fazem os outros?
1 comentário:
Comprar ventoinhas é fácil, dá milhões e imagem... é a fachada!
Fazer os alicerces, isto é, intervir de facto no sistema, garantir a sua qualidade
... é uma canseira, não dá "papers" e não dá visibilidade...
E em caso de apagão?... haverá sempre uma cegonha descuidada...
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